Minimalismo da irmã de Beyoncé tem mais elegância do que entusiasmo. Além de Jarvis Cocker, o grande acontecimento da primeira noite foi a pop futurista de Lets Eat Grandma. Danny Brown, esse desiludiu.
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O tempo foi um dos protagonistas e o maior medo do primeiro dia foi a chuva. Só choveu duas vezes e por breves momentos, às 22 e à meia noite, mas foi chuva chicotada e no segundo caso meteu granizo, desmoralização e fugas repentistas de espectadores. O granizo, um efeito inesperado da depressão atmosférica Miguel, caiu sobre o público seráfico de Solange já na parte final em golfadas frias de pequenas pérolas ou pequenas contas e quebrou prematuramente a esperança, sublinhando aquele que foi globalmente um dos arranques mais frios de oito anos de Nos Primavera Sound no Porto.
A organização ainda não divulgou números de espectadores mas a impressão do 1.º dia é indesmentível: esteve menos gente do que em edições anteriores. O panorama há de mudar esta sexta-feira e sábado: a chuva, ainda que não o frio nada primaveril, já não faz parte das previsões.
Rosa e Jenny: as joias da noite
Lets Eat Grandma, um nome de terror cómico, foi um dos melhores acontecimentos da noite. É um mundo imaginário de caleidoscópios e vozes de hélio, freak folk infantil, dadaísmo, futurismo, psicadelismo e melodias de pink pop punk que fizeram o mais encantador, porque inesperado, concerto da noite inaugural - e no mais bonito palco do Primavera, a pradaria Pull and Bear cercada de pinheiros, lua e o cheiro a alfazema e relva húmida.
São uma preciosidade, Jenny Hollingworth e Rosa Walton, o duo Lets Eat Grandma (no Porto atuaram em trio, teclas, vozes e bateria) e fazem um novo pop sintético a partir da exorbitância das cores do batom do disco sound de 80. Britânicas, ambas têm 20 anos, ambas estão encandeadas pela vida e parecem abissalmente românticas, mesmo quando se fingem de mortas e se atiram comicamente para o chão do palco ou quando cantam surrealizadas sobre os seus gatos mortos.
No seu peculiar teatro terno e pueril, muito bonitas de fato branco (Rosa) e vestido folhado preto curto (Jenny), a agitar os longos cabelos de pequenas medusas, electrizaram o público indie com os singles infecciosos "Hot pink", "Falling into me" e "It"s not just me", do seu segundo e muito recomendável disco "Im all ears".
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Danny Brown não convence todos
Danny Brown tem o género certo para a "nova normalidade" do Primavera Sound, mas não é Tyler, não é Kendrick, não tem aquela centelha, aquela alvura de desafio com que ambos já nos extasiaram cá e estava, aparentemente, no palco errado. O seu concerto foi o mais esburacado do horário nobre, com apenas um terço da maior encosta do festival a aderir plenamente. Em escala, o rapper português Allen Halloween, que tocava à mesma hora, tinha mais público e mais fervente no palco Pull and Bear. É uma bela figura obscura, Allen, que entra e atua de capuz enterrado até aos olhos, a disparar rimas e reclamações da nova geração da portugalidade negra pós-colonial. Foi uma escolha de certa forma falhada, Danny Brown, hip hoper americano de 39 anos conhecido pela rapidez do seu verbo de duplos tempos e triplos tempos. Com palco vazio (era só ele e um DJ), um ecrã monótono onde desfilavam alternadamente o seu nome, a palavra "live" e uma imagem expressionista derretida, só convenceu a faixa de público mais fanático da frente, deixando o resto em olímpica indiferença.
Solange presa no seu palácio
O concerto da irmã de Beyoncé, ou melhor, a sua performance coreográfica de novo R&B teatral e minimal, terá salvo a noite a muita gente (estava mais de meia plateia no palco Nos, mas sem compactação, ou seja: quem quisesse chegava às grades da frente sem grande esforço de penetração), mas não a toda a gente. Isto é certo: a música de Solange, que trouxe um quarto álbum, "When I get home", a estrear, é requintada, elegante, cheia de esmero e asseio sonoro. Mais: esteve sempre emoldurada num excelente sexteto, com seis bailarinas e um dispositivo cénico refinado: um bloco branco maciço que terminava em escada numa ponta, por onde as bailarinas subiam e desciam muito impressionistas; na outra atuava embutido num buraco quadrado o baterista. A luz de cena, ou branca glaciar ou inundada de vermelha brandura, captava toda a nossa atenção para a música, mas deu sempre a impressão que a performance de Solange era mais para ela, e para as vitórias da sua superação pessoal da sombra da irmã, a colossal Beyoncé, do que propriamente para nós. Essa sensação confirmou-se quando ela centrou em si mesma o discurso que derramou sobre o público, louvando-se pela sublevação das suas inseguranças e dos seus medos.
Talvez seja o efeito inevitável da introspeção sonora que a artista empreende no novo disco, que se distende sem pressas no seu cenário ambiental, espiritual e muito zen na contemplação do mundo, mas ao vivo, ali numa plateia a céu aberto, deixa à mostra a fragilidade da sua ossatura e não conseguiu encher a encosta de som quanto mais de euforia ou deleitação. Resultado: adoração plena só no público da frente, que é sempre muito dedicado, metade da sua plateia comportou-se de forma ascética, sem dançar, quase sem se mexer, com muita gente a conversar nas bordas e do meio para trás.
Cocker consegue a unanimidade
Como já aqui se notou, o espectáculo de Jarvis Cocker pós-Pulp no palco Seat, o único com chão de alcatrão, foi o melhor concerto da primeira noite, conseguindo a rareza da unanimidade. Mesmo quando caiu aquela inesperada bátega polar das 22 horas, poucas pessoas fugiram, tendo sido muitas mais as que destroçaram, desalentadas, da plateia do palco Super Bock onde soava à mesma hora o pós-punk canadiano de MorMor (não foi mau o concerto, mas a temperatura sonora pouco se elevou acima da tepidez, concluindo-se que MorMor é melhor em disco do que ao vivo). A viagem exploratória de Jarvis sobre a evolução da espécie e do corpo da pop soou ali com toda a pompa e força pop orquestral, conseguindo inopinadamente superar a pujança floral dos velhos conhecidos Pulp.