"Tóxico" chegou aos cinemas. "Há ainda muita gente a viver na pobreza na Lituânia"
Uma jovem de 13 anos tenta escapar a uma existência miserável, num bairro degradado, inscrevendo-se, com uma amiga, numa escola de modelos. Com "Tóxico", sobre a forma como a sociedade modela comportamentos e a noção do corpo, a lituana Saule Bliuvaine venceu com este seu primeiro filme um dos prémios mais importantes do mundo do cinema, o Leopardo de Ouro de Locarno. O filme já está em cinema nas nossas salas.
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Porque escolheu este tema em particular para o seu primeiro filme?
Acho que todos os realizadores que vão fazer um primeiro filme escolhem um tema sobre o qual possam refletir. Eu escolhi refletir sobre o período em que tinha 13 anos. No geral, esta idade é muito interessante. Já não somos crianças, mas ainda não somos bem adolescentes. É um período peculiar das nossas vidas onde não sabemos bem quem somos, para onde vamos e do que gostamos.
Há um lado biográfico no seu filme?
Quando eu tinha 13 anos era o ano de 2008, por aí. As companhias que andavam à procura de raparigas muito pálidas e magrinhas eram muito populares. Quando eu e uma amiga minha não tínhamos nada para fazer íamos a um casting daqueles.
Pensa que o seu filme é um bom retrato da juventude da Lituânia de hoje, em especial das raparigas, como vemos no filme?
Originalmente, era suposto a ação do filme ser no passado, por volta de 2008 ou 2009. Mas quando estava a fazer o casting vi muitas raparigas, falámos muito sobre a história, como é que elas se relacionavam com o guião e percebi que, mesmo que os problemas delas tenham evoluído, no fundo são os mesmos.
E hoje há todo o impacto das redes sociais...
Sim, há filtros para alterar a imagem dos nossos corpos. Por vezes estamos a olhar para pessoas que não existem. De certa forma fiquei chocada com o número de raparigas que se identificavam com a história. Acabei por colocar no guião alguns detalhes de histórias que elas me contavam.
O facto de uma das protagonistas coxear é um elemento dramático ou baseia-se em alguma pessoa que conheceu?
Criei essa característica na personagem porque queria falar de falhas. Há muitas personagens assim no filme, como a rapariga com o corpo disforme que vemos. O que queria era mostrar a beleza que há nessas falhas. Há pessoas que lutam imenso para serem perfeitas, quando à nossa volta há tanta beleza em pessoas que têm estas falhas. Para mim é muito bonito e quis mostrá-lo.
O que encontrou nas duas jovens protagonistas para as ter escolhido?
Quando fizemos o casting convidámos muitas raparigas em grupos. Fizemos workshops, encontrámo-nos várias vezes, para que estivessem cada vez mais à vontade e para que víssemos as suas capacidades e potencialidades como atrizes. Do que estava à procura era de flexibilidade. Capacidade de se ajustarem aos meus comentários, de improvisar, de esquecer quem eram. E estas duas foram as mais imaginativas.
Como é que trabalhou depois com as elas?
Quando as escolhemos estávamos ainda a seis meses da rodagem. A atriz que faz o papel de Kristina só tinha 12 anos quando a escolhi. Foi duro encontrar uma maneira de as preparar. Falámos com os pais, demos-lhe o guião para lerem e tive muita sorte que os pais tenham percebido perfeitamente o objetivo do filme. Preparámos bastante o filme, quando começámos a filmar, elas já estavam perfeitamente dentro das personagens.
O lugar onde elas vivem torna-se uma personagem do filme. Existe mesmo ou foi construído para o efeito?
A maior parte dos exteriores foi filmado em duas cidades, Vilnius, a capital, e Kaunas, a segunda maior cidade, de onde eu sou. Nos arredores destas duas cidades há estes complexos industriais, são restos ainda do período soviético. Em Kaulnas, conhecia alguns locais específicos onde sabia que ia filmar, quando estava a escrever o guião. Os outros tivemos de os ir procurar.
Mas as pessoas vivem ainda naquelas condições que vemos?
Os donos da casa da família da Kristina tiveram de ir dormir para um hotel enquanto lá filmámos e ficaram muito contentes. Encontram-se ainda pessoas a viver naquelas condições. Muitos lituanos que viram o filme disseram que não, que aqueles tempos já passaram, mas basta fazer algumas dezenas de quilómetros fora das cidades para encontrar uma realidade muito diferente. Ainda há muita gente que vive na pobreza.
Consegue colocar a câmara nos locais mais inesperados, sem que pareça um efeito...
Tive muita sorte em trabalhar com um diretor de fotografia talentoso e que gosta de experimentar. Muitas posições da câmara estavam decididas desde que visitámos pela primeira vez os locais onde íamos filmar, mas outras mudámos na altura. Na montagem fiquei com várias opções, mas trabalhei de forma intuitiva. Por vezes a posição da câmara parecia bizarra, mas resultava. Foi muito experimental.
O seu filme não se parece com nenhum outro sobre a adolescência.
Eu queria quebrar todos os clichés dos filmes de adolescentes, Detesto os estereótipos, quando a câmara está em cima do rosto das personagens o tempo todo. Gosto de ver onde a ação se desenrola, a atmosfera onde as personagens evoluem. São esses os filmes de que gosto e por isso é que o fiz assim.
Qual foi a sua primeira reação quando soube que tinha ganho o Leopardo de Ouro?
O diretor do festival tentou ligar-me várias vezes mas havia qualquer coisa de errado com o meu telefone. A certa altura toda a gente andava à minha procura. Quando saí do hotel disseram-me na receção que um homem andava à minha procura. Quando finalmente me encontraram, disseram-me que tinha ganho o Leopardo de Ouro e que tinha de me preparar. Nem percebi bem, pensei que se tinham enganado. Acho que só percebi completamente o que se tinha passado duas semanas depois do festival.
Mas agora já deve estar a sentir o impacto e a pressão de ter ganho esse prémio.
É claro que muita gente me contacta, agentes, produtores. Mas o maior impacto foi ser selecionada para tantos festivais, conhecer tanta gente e fazer tantos contactos nesta indústria. Para quem quer fazer mais um filme, e outro, e outro, estes contactos são muito importantes. Mas é claro que há sempre uma grande incerteza. Há uma grande ansiedade no facto de agora termos de provar que merecemos estes prémios. Psicologicamente não é fácil, ficamos muito felizes, mas muito ansiosos ao mesmo tempo.
No geral, qual é a situação do cinema lituano?
Está a acontecer agora uma nova vaga lituana. Há muitos realizadores que ganharam prémios com os seus primeiros ou segundos filmes. Este sucesso deve-se em grande parte ao sistema que temos de subsidiar primeiros filmes e novos diretores. Há uma secção específica do fundo lituano dedicado a estes filmes, que normalmente têm grande sucesso. E toda a gente se entreajuda. Há uma grande integridade na nossa indústria e estamos muito satisfeitos com isso.