Festival Tremor arrancou em Ponta Delgada, Açores, na terça-feira, muito concorrido para o concerto do veterano brasileiro Jards Macalé.
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André e Paulo apanharam o avião do Porto para Ponta Delgada com uma missão: apresentarem-se formalmente à família de André, agora que o pai já aceita a relação destes. Não deixa de ser uma coincidência curiosa que aproveitem o Dia do Pai para o fazerem, mas riem muito à pergunta se é uma celebração da efeméride.
"Claro que não! Vamos nesta altura porque hoje começa o festival Tremor e foi lá que nos conhecemos há seis edições", dizem com os olhos a brilhar atrás dos óculos escuros. Estão tão empolgados que passam as duas horas de viagem sempre a tocarem-se como se houvesse um qualquer campo magnético invisível entre ambos. André partilha fotos da família toda com Paulo e vai fazendo legendas: "Como os meus irmãos são mais novos, o Paulo nunca os conheceu, o meu pai proibiu, não fossem eles ficar como eu".
Apesar da frase encerrar em si um imenso drama, tudo parece agora ultrapassado, como se finalmente encontrassem o pote de ouro no final do arco-íris. Nestes seis anos foram viver este amor para Manchester, onde ninguém os conhecia. E agora regressam à ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açoresa, ilha do amor proibido, como garante a publicidade - mas em vez de ser entre a princesa e o pastor, é entre dois empregados de hotel.
No meio da força magnética e do empolgamento antecipam hipóteses de como será a reação da família. Como se passássemos vários episódios de uma novela e reatássemos uns capítulos depois, falam de um casamento "pequeno, amanhã no Registo Civil". Abraçam-se de lágrimas nos olhos e deixam o avião a sorrir.
O Festival Tremor 2024 arrancou oficialmente esta terça-feira, e prossegue com programação diária, sobretudo de concertos, até ao próximo sábado, no Espaço Nóbrega, no centro da cidade de Ponta Delgada, com a inauguração de uma exposição "Reinterpretando Arte Bonecreira e Presépios de Lapinha".
Aqui, o público pode assistir ao vivo à execução dos bonecos por artesãos. A grande atração são os reencontros em que os visitantes se abraçam, deparando-se com velhos conhecidos, todos com histórias comuns de edições passadas do Tremor - o que dá logo uma boa imagem: quem cá vem, repete. E chegam a ser competitivos sobre quem vem há mais anos.
Mas o primeiro concerto da noite, nas Portas do Mar, na avenida marginal de Ponta Delgada, junto à marina, é o grande congregador. Jards Macalé, o octogenário brasileiro que mistura música popular brasileira, samba, bossa e rock em partes iguais sobe a palco depois de uma introdução que deixa qualquer pretensa estrela de rock arrasada: "Este é o último espetáculo de uma digressão com 80 concertos".
A sala está cheia, o público vibra. Na plateia estão, horas depois, André e Paulo, colados como uma figura de Shiva com quatro braços no ar. E cantam com emoção o refrão "as mãos frias mas o coração queimando", do tema "78 rotações", de Jards Macalé.
Jards Macalé: um virtuoso tigre
Os espectadores das filas da frente saíram da cidade do Porto e o facto de a Lovers & Lollypops estar na produção do festival Tremor não é inocente nesta frequência. Irritados por haver quem fale no concerto, atiram para o ar com um "porra!, calem-se!, isto não é um café!".
Mas depois sucumbem à poesia de Macalé : "Não choro/Meu segredo é que sou rapaz esforçado/Fico parado, calado, quieto/ Não corro, não choro, não converso/Massacro meu medo/Mascaro minha dor/Já sei sofrer" . Na sequência segue-se uma "Garota de Ipanema" que padece de alguma condescendência do público. Mas logo "Revendo amigos com o seu coro, se me der na veneta eu morro e volto para curtir, ehh ahb ihhhh". E "Eu volto para curtir" levanta o público em entusiasmos, bem como a homenagem a Gal Costa com “Hotel das estrelas”. O desamor segue no "Vapor barato".
Mas, de repente, a poesia: "Meu amor é um tigre de papel/Range, ruge, morde, mas não passa/De um tigre de papel/Numa sala ausente meu amor presente/Me prende entre os dentes depois me abandona e vai definitivamente". André e Paulo olham um para o outro e, numa epifania, André diz-lhe: "Vamos tatuar isto? Mas com letra!". Paulo responde: "Tudo bem".
No encore de Jards Macalé em que o compositor canta "ah, como é forte o gosto da farinha do desprezo, só vou comer agora da farinha do desejo", abraçam-se. E os dois continuam a sorrir.
Não sabemos como correu o encontro da família. Provavelmente trocaram para o dia de hoje o casamento pela tatuagem. Ou então, como as mulheres e pessoas não-binárias que depois da residência das DJ de Manchester se atreveram a dar música no primeiro clubbing do Tremor, no "All hands on deck", e têm de criar novos sons conforme o que vão encontrando.