A açorianidade esteve em destaque no terceiro dia do Festival Tremor que está instalado em Ponta Delgada até sábado, num programa recheado de descobertas: musicais, gastronómicas, antropológicas e sociológicas.
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Parte do desfrute do Festival Tremor assenta na sua construção lúdica. O encanto do público desconhecer a localização de alguns dos concertos e também a identidade de alguns dos artistas. Ora, desde que o festival começou que corriam rumores que Sandro G, o malfadado rapper açoriano, radicado nos Estados Unidos da América, iria aparecer no Tremor Açores.
O boato adensou-se quando Sandro G publica a mensagem cifrada do Terminator: "I'll be back"... Apesar de a organização negar a presença do músico, havia quem atestasse que seguramente iria ser um dos convidados de Sam The Kid para o concerto com a Escola de música de Rabo de Peixe, que decorreu esta quinta-feira no Porto de Pescas da freguesia. A expectativa levava três dias a cozinhar.
No caminho para Rabo de Peixe, uma jornalista norte-americana evangelizou as suas companheiras sobre a série homónima da Netflix e todas exclamavam com espantos sincronizados. Mas, nada comparado com o clamor sentido quando ela revelou que... Nelly Furtado era descendente de açorianos! Embuchadas de informação sobre a diáspora açoriana, chegaram a Rabo de Peixe em ebulição.
Ao caminhar pela freguesia onde as marcas do sucedido são bem mais duras do que qualquer realidade ficcionada, os festivaleiros iam reconhecendo o "cenário da série". "Estão a ver este edifício? Este é o videoclube de Rabo de Peixe"... Até que alguém atira: "E o José Condessa não anda por aqui não?", provocando a risada geral.
No gigantesco porto de pescas, Sam the Kid juntou neste projeto especial mais de 20 estudantes da Escola de Música de Rabo de Peixe e 11 MC açorianos. A histeria era gigantesca, com centenas e centenas de pessoas: crianças, mães, avós, festivaleiros de telemóveis empunhados para filmar o que ali se ia passar. E tinham toda a razão para tal.
O concerto foi histórico para esta comunidade. Mostraram o que de melhor se faz nos Açores, especial destaque para Joana Pacheco e para Madruga, duas vozes para recordar. Os instrumentistas, sempre atentos ao professor Sam, foram muito competentes. No fim do concerto, o momento por que todos esperavam: os MC e Sam the Kid cantaram "Eu não vou chorar", levando o público às lágrimas. Um sentido de pertença que, estando em Rabo de Peixe, se sente ter ainda mais força - e, afinal, Sandro G esteve presente, nem que fosse só através da sua composição.
Depois de um momento quase de fim de novela, em que todos os participantes aparecem sempre a sorrir, o público juntou-se num arraial de cozinha comunitária com o DJ Gaivota, onde os caldos de Rabo de Peixe estavam sempre a sair, assim como as músicas como "Tu vai ser minha", de Sidónio Silva.
La Jungle e Masha sem o urso
Horas antes, no Mercado da Ribeira Grande, os belgas La Jungle foram classificados como "uma réplica do sismo de quarta-feira na Terceira". São electrizantes e formaram um dos primeiros "mosh" e "stage dives" do Temor 2024, com o acréscimo de estarem a fazer tudo dentro de um mercado com um pé direito bastante baixo. De quando em vez ouvia-se o público sorver em falso, sempre que alguém rasava a cabeça numa trave. Mas um noise rock deste calibre merecia todos os riscos.
Com os festivaleiros de regresso a Ponta Delgada, instala-se o stress de escolher que concertos ver, é impossível ver todos.
Kate NV, uma caricata moscovita, apresentou-se no auditório Luís de Camões. A russa veio apresentar “Room for the moon", o seu mais recente disco de pop new wave. A sua fisicalidade é igual à de Masha, mas sem o urso e em versão adulta. Tem o mesmo cabelo e a mesma forma de dançar. Mas a hiperglicémia a que nos sujeita resulta no máximo em cinco canções - a partir daí tanto doce maravilhoso começa a transformar-se num entediante exercício calórico de uma mulher adulta com risinhos forçados, a dar voltinhas e a cantar o que parecem ser sempre as mesmas canções. O que se reflete no público, que vai abandonando a sala.
"Eu não vou chorar, esta vida não era para mim", nunca saberemos se as outras opções eram melhores. Mas viver (um festival) é também arcar com as escolhas. Como os romeiros que percorrem a ilha de São Miguel, esta semana teremos de viver com esta expiação de pecados - e cantar.