Festival açoriano terminou este sábado com atuações de Rodrigo Amarante, Alabaster dePlume e Taqbir. Deixou rasto de diversidade e ousadia. E ajudou a conhecer São Miguel
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Tremor não é um festival de consensos. Nem poderia ser, quando o compromisso é com as possibilidades sempre em expansão da arte musical, quando o vínculo é com os sinais, quase sempre ambíguos, de um som futuro e com a perceção de que esse amanhã não tem lugar exato para despontar: o planeta é demasiado vasto. "Uns vão gostar de umas coisas, outros vão gostar de outras", já avisava um dos diretores do certame, Márcio Laranjeira, no arranque desta 9.ª edição. Lyra Pramuk e The Rite of Trio, números que atuaram na sexta-feira, são bons exemplos desse ato arriscado que é o Tremor.
A norte-americana sediada em Berlim faz da sua voz matéria espiritual e ritualística. É cântico ancestral e futurista num mesmo tabuleiro, é solenidade de catedral e heresia clubbing num mesmo gesto. Figura esguia e requebrada, Pramuk confunde a origem do som que exala, parte é gravado, outro é cantado no momento, mas qual é qual? Na base há eletrónica em golfadas densas, estáticas, meditativas, por vezes catárticas. E como reage o público a isto? No magnífico Auditório Luís de Camões, em Ponta Delgada, viu-se de tudo. Quem saísse de imediato, quem fizesse um esforço de minutos, e quem se deixasse levar. Unanimidade é que nunca.
Algo semelhante aconteceu pouco depois, ali perto, no Solar da Graça, com a atuação dos The Rite of Trio. Portuenses com origem no jazz, André Bastos Silva (guitarra), Filipe Louro (contrabaixo) e Pedro Melo Alves, escavacam formas musicais já de si implodidas, como o free jazz ou o rock progressivo. Chamam ao que fazem "jambacore" e materializaram a aventura, pela primeira vez, no álbum "Getting all the evil of the piston collar", de 2015. Há momentos em que o baterista se esbofeteia, criando nesse ato um novo ritmo, há brutalidade rock, há performance dadaísta: Pedro Melo Alves num fato de super-herói de opereta abandona o instrumento e desaparece do palco com uma mala, dá a volta à sala, reentra em palco, enerva-se com a mala, tira tachos do seu interior, inventa novos ritmos, regressa à bateria, o show progride. E o público? Há quem ria, quem vire as costas, quem fique colado. Unanimidade é que nunca.
Eletrónica de coração negro
Mas nem tudo é controverso no Tremor. Há espaço para alguma concordância. O concerto dos We Sea, banda a jogar em casa e amplamente cultivada pelo festival, agradou genericamente ao público que se deslocou ao Coliseu Micaelense. Pop melódica bem cosida e a voz singular de Rui Rofino, que nalgumas esquinas lembra Variações. Também sem grande atrito foi a receção aos franceses MadMadMad, que a partir da saturação de elementos disco, pós-punk e no wave constroem uma rave orgânica, inclemente na sua vertente rítmica - marcada por um baixo poderoso a lembrar Gang of Four -, mas suficientemente enriquecida para evitar o rame-rame.
E há ainda momentos de pura comunhão, como o suscitado pelo admirável set de eletrónica com alma negra da ugandesa Catu Diosis, do coletivo Nyege Nyege, que conseguiu o prodígio de ressuscitar os corpos estafados por longas horas de concertos no foyer do Coliseu Micaelense, já de madrugada.
Anonimato, erva e rapidez
A reta final do Tremor, este sábado, abriu com o punk marroquino dos Taqbir, que impuseram três condições para a sua atuação: o anonimato (pelas letras perigosas), erva em abundância e a realização de um ato breve, de 20 minutos, onde descarregaram os quatros temas do seu único EP. Seguiram-se os concertos de Rodrigo Amarante, As Docinhas, Alabaster dePlume e Toot Ard, cabendo os últimos foguetes à sessão DJ de Farofa + O gringo sou eu. Desafiante e imprevisível, o Tremor inventou o seu próprio lugar no panorama dos festivais portugueses. E o lugar em que se inventa dá garantias de inspiração.