Obra de Shakespeare encenada por Nuno Cardoso tem as últimas récitas este sábado e domingo no Teatro São João, no Porto.
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Um Hamlet com ‘perfecto’ de couro e uma grande caveira estampada na t-shirt. Um Hamlet esfarelado emocionalmente, cambaleante, instável, imprevisível. Um grande poeta desperdiçado, como escreveu Harold Bloom. A notável composição de Pedro Frias está no centro do sétimo assalto de Nuno Cardoso à obra de Shakespeare. “Hamlet”, com tradução de António M. Feijó, passa a figurar entre os mais altos conseguimentos do ex-diretor do Teatro São João. As últimas récitas são este sábado e domingo.
Do “aborrecimento mortal” descrito por Peter Brook, referindo-se à encenação reverente que faz as delícias do espectador conformado em seguir os versos que decorou, nada resta. “Qualquer repertório e qualquer peça clássica sobrevive porque encaixa na realidade”, disse Nuno Cardoso. Décadas antes, o teatrólogo Peter Szondi sugeriu algo semelhante ao estabelecer a diferença entre a “realização histórica de uma forma intemporal [e incontestada]” e a produção de uma “forma historicizada” – ou seja, precipitada pelo conteúdo histórico de cada tempo.
Ao fazer de Alberto Magassela – um africano – o fantasma do rei Hamlet, ao introduzir o “gender trouble” na figura de Guildenstern, interpretado por Patrícia Queirós, e ao incluir as novas tecnologias – formalmente na utilização do vídeo, e no próprio conteúdo da peça ao usar as ‘sms’ como parte da exposição do texto, Nuno Cardoso não está a trair nem obra nem audiência. Está a adicionar-lhe o poder do agora – o que talvez explique a entusiástica adesão dos muitos jovens presentes na récita de quinta-feira.
Todo o drama decorre num lugar anónimo – um armazém ou, apostaríamos, um matadouro – que funciona como dispositivo versátil e dinâmico: as cenas sucedem-se com o simples correr de portas metálicas situadas em diferentes planos do palco; uma engenharia fluida de F. Ribeiro. Os momentos-chave da peça, uma das mais encenadas de sempre, são particularmente inspirados.
O fantasma a revelar a Hamlet a forma como Cláudio o assassinou e lhe usurpou a mulher e o trono é puro psicadelismo. A cena do ‘teatro dentro do teatro’ – quando a trupe interpretada por um único ator, Jorge Mota, lança a “ratoeira” ao usurpador, é tensa e histriónica; e ali ficou para a posteridade essa ideia do teatro como agente de desocultação e denúncia. Finalmente, no duelo entre Hamlet e Laertes, Cardoso revela toda a sua imaginação teatral – logrando um momento impossível de realizar por qualquer outra arte. O resto é um texto sublime - e o silêncio.