
Milhares de pessoas concentraram-se, ontem, em frente à Câmara Municipal de Lisboa para o último adeus. O Nobel da literatura português "está vivo e o seu espírito fulge descansado das humilhantes misérias da carne", disse Carlos Reis, da Fundação Saramago.
Depois, o caixão entrou no cemitério do Alto de São João, também na capital, e os últimos metros antes do forno crematório foram percorridos debaixo de uma chuva de dezenas de cravos vermelhos lançados por centenas de leitores e admiradores. Sob um aplauso ininterrupto, gritou-se "A luta continua" e ergueram-se exemplares de "Levantado do chão". Foi pouco antes das 13.30 horas que a chaminé da cremação soltou fumo e as palmas aumentaram de intensidade. Velhos e novos choraram a sua partida. Zeferino Coelho, editor e amigo do escritor, confidenciou aos jornalistas que segundos antes de José Saramago ser cremado, a sua mulher, Pilar del Rio, evocou Jorge Amado.
Mas a última homenagem ao escritor tinha começado bem cedo: às nove da manhã, já havia gente concentrada em frente à Câmara Municipal para o derradeiro adeus. Familiares, amigos, leitores, jornalistas (muitos espanhóis, alguns brasileiros) e uma considerável representação de figuras da política: José Sócrates, Mário Soares, Ramalho Eanes, Jerónimo de Sousa, Gabriela Canavilhas, António Costa, Nunes Liberato e Carlos Carvalhas, entre muitos outros.
A partida para o cemitério estava marcada para o meio dia, mas antes celebrou-se uma última cerimónia no Salão Nobre. A multidão na Praça do Município acompanhava tudo através de um ecrã gigante e não poupou aplausos a Gabriela Canavilhas quando a ministra da Cultura sublinhou que Saramago "uma vez e tantas outras vezes" usou as suas palavras no "respeito à terra e aos homens" e também na "denúncia contra a guerra do Iraque ou contra a ocupação palestiniana" ou ainda em prol das "causas dos sem-terra, do movimento anti-globalizante, da preservação do ambiente ou do anti-clericalismo desassombrado".
"Usou a escrita para uma reflexão sobre as grandes causas da humanidade", tendo lutado "contra as injustiças", prosseguiu a ministra, referindo que a escrita de Saramago "foi instrumento, foi arma, foi agente provocador e plataforma de interrogação permanente do indivíduo e da sociedade". A poucos metros, Pilar del Río emocionou-se e abanou afirmativamente a cabeça quando Canavilhas afirmou que Saramago "não tinha fé em Deus, mas se Ele existe, certamente Deus teve fé nele".
" Foi um narrador que não se limitou a narrar, mas a participar activamente e a restituir a história àqueles que são ignorados muitas vezes pela historiografia oficial", destacou, por seu turno, Jerónimo de Sousa, líder do PCP, numa breve intervenção igualmente aplaudida. "Foi um homem que acreditou nos homens mesmo quando os questionava que deu expressão concreta à afirmação de Bento de Jesus Caraça sobre a aquisição de cultura como um factor de conquista de liberdade", rematou o comunista.
Por seu lado, a vice-presidente do Governo espanhol, Maria Teresa Fernandez Vega, referiu que Saramago "sonhou com um Mundo em que os fortes eram mais justos e os justos eram mais fortes"
"A sua obra é património de toda a humanidade", observou, por seu turno, António Costa. "A sua mensagem e o seu desassossego", prosseguiu o presidente da Câmara de Lisboa, "continuarão a desinquietar-nos e a desinquietar todos aqueles que lerem a sua obra".
"Uma constante militância para desassossegar imagens feitas", afirmara, minutos antes, Carlos Reis, da Fundação Saramago. "O escritor", continuou, é "uma personalidade em que uma cultura se identifica e uma literatura se ilustra". Foi "uma despedida sem adeus", como referiu .
No final das intervenções, a violoncelista Irene Lima brilhou numa comovente interpretação de Saraband da 2º suite em ré menor de Bach e "O canto dos pássaros", imortalizado pelo catalão Pablo Casals. A atmosfera, dentro e fora da sala, era de profunda comoção. Pilar del Rio foi à varanda agradecer ao público. E, de seguida, o caixão foi transportado para a carrinha funerária. Assim que fez a sua aparição na rua, a multidão aplaudiu e gritou "Obrigado, Saramago".
O cortejo seguiu, em ritmo lento, para o cemitério do Alto de São João, onde aguardavam centenas de pessoas, algumas vindas de Azinhaga, a terra que o viu nascer. "Era uma pessoa muito querida lá na terra", murmurou, ao JN, Fernando Girão, de 52 anos, e cujas mãos construíram os móveis para a casa-museu na Azinhaga. "Ele foi muito amigo", recordou. "Até deu uma carrinha para a Santa Casa da Misericórdia e ajudou a biblioteca", acrescentou. "Tudo aquilo que se lhe pediu, ele ajudou sempre", rematou o seu conterrâneo.
