"O filme é um murro no estômago, não se conhece esta realidade. Foi uma violação dos direitos humanos".
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Foi num silêncio quebrado pelo murmúrio de lágrimas contidas que decorreu a projeção do documentário "A nossa terra, o nosso altar" na sala do Cinema Trindade, no Porto, anteontem à noite, numa sessão especial com a presença do realizador e de uma das protagonistas.
E ela, Luísa Ferreira, não fez qualquer esforço para conter os fundos suspiros que lhe ocorriam ao rever o filme que retrata os oito anos que durou o desmantelamento do Bairro do Aleixo, onde viveu 45 anos. Nos últimos sete, André Guiomar fez uma "narrativa emocional", sem disfarçar a sua intenção política e o seu envolvimento humano.
Também se ouviram gargalhadas, tantas quantas as cenas espontâneas de comédia a que dá azo a desenvolta franqueza tripeira. Quando aparece outro dos protagonistas, Zé da Bina, uma figura que se vai tornando mais e mais cativante à medida que o seu caráter terno se desvenda, Luísa solta o coração à boca: "Ai, isto dá uma saudade!...".
Foi assim a sessão especial que juntou, na noite de anteontem, o criador do filme e uma das suas estrelas, com sala praticamente cheia. "Há muito tempo que não se via um filme do Porto chamar tanta gente", disse o responsável pelo Trindade e pela distribuidora Nitrato Filmes, Américo Santos.
A mexer com o porto
Desde que o filme ali estreou, no final de julho, já houve três sessões especiais, com presença do realizador. "Sentimos que é um filme que está a mexer com o Porto, é muito forte e apelativo", referiu Américo ao JN. Tem visto famílias inteiras que viveram no Aleixo na sala, mas também outros que despertaram para o filme pelos jornais.
Foi o caso da primeira interveniente na conversa de André e Luísa com o público. "O filme é um murro no estômago, quem conhece o Aleixo não conhece esta realidade", referiu, sem disfarçar a sua revolta. Elogiou o filme por mostrar a "anatomia de um crime cometido pelos dois últimos presidentes de Câmara, que foi uma violação dos direitos humanos".
Uma jovem, que falou comovida - "a minha mãe também foi despejada" - quis saber dos sentimentos de Luísa. No filme, ela surge como uma mulher alegre que, ao cabo dos seis anos de morte lenta do bairro, aparece, tal como os outros, transfigurada pelo desgaste. Alguns parecem ter envelhecido muitos anos.
À desgraça do desenraizamento, somaram-se as comuns desgraças da vida, como lutos. André, que pensou muito em incluir esses momentos que não estavam, ao fim e ao cabo, relacionados com o realojamento, acabou por fazê-lo - faziam parte do pulsar da "comunidade única" do Aleixo.
Voltou ali em 2019, quando parecia que a longa espera pelo fim do bairro estava a acabar. "Encontrei um bairro completamente diferente, tinham-lhe sugado toda a energia, toda a comunidade", disse. A despedida do bairro, com uma festa intensa e emocionada, comoveu também a plateia. Ri-se e chora-se ao mesmo tempo no Trindade.
"Aquilo aparentemente era um inferno, mas havia muito companheirismo", comentou Luísa, no final. É dela uma forte cena do final: quando saiu, deixou numa parede de casa uma inscrição emblemática: "Os pobres não têm direito a olhar para o rio".