Festival de Barcelos mostrou na primeira noite duas ótimas bandas que estralhaçam o rock, a memória e o futuro: o metal finlandês de soup opera dos Circle e a feira pós-punk noir dos Warmduscher. Mas ainda houve a eletrónica de Squarepusher e o seu desafio impossível de superar: como é que se dança mesmo IDM?
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Nada nos prepara para ouvir Mika Ratto falar, mas ele, que é o vocalista dos Circle e se senta à frente da banda num teclado muito baixo, metido nuns collants cor de rosa, descalço e com o casaco de napa de rocker a desfazer-se juntamente com o seu cabelo loiro, fala frases inteiras em finlandês entre os intervalos das canções como se o público o estivesse a entender perfeitamente. Ele tanto pode estar a falar sobre tempo, geopolítica ou os seus pés, ou pode estar literalmente a insultar-nos, que para nós é indiferente: ninguém percebe patavina daquele idioma da família das línguas urálicas e fino-pernianas e cada um desses momentos pareceu um quadro de comédia surreal.
Foi o mais fino, esmerado e violento concerto (violento talvez não porque ainda haveria de chegar depois Squarepusher, que é eletrónica servida como uma chuva de balas) da noite desta sexta-feira no Milhões de Festa 2018, que arrancou na quinta com o Parque Fluvial de Barcelos a franquear a entrada de ónus. Chama-se Circle, é uma banda finlandesa de metal surgida nos anos 1990, tem editados 32 discos (!) e parece um quinteto de soup operas do passado apaixonado por jazz e pelos contratempos do krautrock.
Além de Mika Ratto e dos seus cintilantes collants, o resto da banda também se aplica nos exageros folclóricos de quem não se leva demasiado a sério, mas que toca com toda a seriedade, sobretudo o baixista e fundador do grupo, o cabeludo Jussi Lehtisalo, que traz uma t-shirt com asas angélicas à frente e se aplica muitas vezes a fazer a pose e a repetir os gestos lentos das divas distantes - e muitas vezes faz isso a levantar a sua guitarra-baixo ao alto sobre a cabeça, em câmara lenta, como se fosse um santo no altar do teatro do rock.
Poeira e público a ulular
O seu set de 60 minutos de metal operático apoiou-se no eixo da corrente alternada, que é uma corrente elétrica cujo sentido varia no tempo, ao contrário da corrente contínua cujo sentido permanece constante ao longo da sua duração. Nas canções rápidas, que são mastodônticas e ganidas, levantaram entre o público extasiado da frente uma fina nuvem de poeira filigranada e dourada; nas canções lentas deixaram os espetadores retidos na tensão de uma música que ameaça sempre vir a explodir.
O palco era aberto para os bastidores, onde imperava a visão de um enorme carvalho acerejado junto ao rio Cávado que corre por trás, e as luzes disparavam fachos brancos sobre a colina e faziam redomas sobre ela. Um terço da plateia afastou-se e escolheu ver os Circle mais ao longe, com as pessoas dispersas pelos bancos de granito que sobem pela colina de relva do Parque Fluvial de Barcelos acima, quase todas sentadas, mantendo uma distância de segurança entre elas e as perfurações daquele metal teatral.
O concerto terminou com os músicos todos fechados num triângulo de feedback a levantar hossanas às guitarras erguidas e depois os cinco Circle despediram-se na sua língua de fonologia cómica. Foi o número mais hipnotizante da noite e o público acabou a ulular, incentivando os finlandeses com pequenos urros, palmas e assobios de satisfação.
Um banho quente de rock
No fim daquilo, e do alvoroço derivado do pó que ainda bailava borrifado no ar, muita gente ficou por ali, à frente do vazio palco Milhões, a conversar animadamente e a esbracejar, enquanto outros já caminhavam, com passos urgentes debaixo da lua, para o espaço do lado, o palco Lovers, que é mais pequeno e tem o chão e uma parede alta forrada a granito, onde muitos espetadores se encostavam, sentados, à espera da banda seguinte.
Neste festival Milhões de Festa nunca há sobreposições, os horários de atuação são consecutivos, e apesar de haver cerca de seis dezenas de bandas por cartaz, é sempre possível ver tudo, basta que se tenha todo o tempo livre entre as duas horas da tarde e as cinco horas da manhã de cada dia.
O quarteto londrino Warmduscher, que quer dizer "banho quente" em alemão, o que é evidentemente gozo, ironia e sarcasmo, foi o fenómeno ovniológico da noite e eles tocaram após um intervalo de meia hora depois dos Circle, um tempo que pareceu necessário e adequado para limpar todas as impurezas do espírito conspirativo e teatral do metal.
O que são os Warmduscher? Um combo de poderoso, e às vezes melancólico, rock que consegue profanar vários géneros ao mesmo tempo e, no retalho, erguer música nova. É esta a sua estrada perdida: entre o punk de garagem, o funk da blaxploitation, o noir de David Lynch, o blues de baixo ventre e ainda o glam e o disco metidos numa pista de carros de choque com um vocalista-feirante que parece um mexicano-texano de rotunda barriga e que chega, todo tonitruante, num casaco de brilhantes.
Ferrar os dentes e estralhaçar
O resultado é entusiasmante - é como uma festa exógena que quer incluir toda a gente - e por uma razão principal: o vigoroso trio (guitarra, baixo e bateria) que rodeia o vocalista Clams Baker, também conhecido como Mutado Pintado, um cromo que junta à sua fachada de gordo com bigodinho uns óculos de glitter ou de Elton John, parece saído de entre o vasto pasto de ervas daninhas de Nick Cave desde que ele fundou os Birthday Party, uns Bad Seeds liderados por Tracy Pew se Tracy Pew não tivesse morrido e fosse ele a mandar naquilo tudo com o seu bigode arqueado de falso manso ditador.
Fruto do conjúgio feliz entre membros dos Fat White Family e dos Paranoid London, os Warmduscher possuem um "modus operandi" peculiar: ferram os dentes num género musical convencional e depois fazem tudo para o estralhaçar, servindo uma nova papa no prato, como em "Big Wilma", uma peça de rock clássico dos anos 50 passada por um picador de krautrock, ou "1000 whispers", em que parecem uma banda de soul contaminada por radiação ou por amianto, ou "Standing on the corner", uma canção entupida pelos Gorillaz se os Gorillaz fossem negros e empunhassem guitarras psicóticas e metralhadoras funk.
Curto e contrito em 45 minutos, a mover-se como uma locomotiva de romances de cordel e assombrações avariadas de disco, com a voz do redondo Mutado Pintado tratada para parecer que vem devolvida do espaço como a luz em refração, cheia de surrealismo espacial, foi um ótimo concerto que terminou numa animada roda punk entre o público da frente do palco Lovers, com todos aos encontrões como se estivessem a ver um crocodilo a arder.
Quando a banda se despediu e saiu, um grupo de espetadores que incluía um com uma t-shirt dos Parliament, outra dos Astronauts e ainda outra dos First Eye Contact, desatou a chamar pelo vocalista em modos muito francos: "Volta! Volta ó gordo do cara***! Toca mais uma! Só mais uma!". E muito inesperadamente os Warmduscher voltaram e tocaram uma coisa feral de roadhouse blues. Que riqueza de banda, têm que cá voltar muitas vezes.
Derreter um continente digital
No fim do concerto dos Warmduscher, o público converge e diverge em conversas, concorda entusiasmadamente, e avança de novo para o palco principal, caminhando todo de uma vez entre a luz e a sombra do fresco Parque Fluvial, preparado para emborcar o prato principal da noite: Squarepusher.
Squarepusher, o pseudónimo central do produtor inglês Tom Jenkinson (também se chama Chaos A.D. e The Duke of Harringay), é um arquipélago de beats e fios elétricos cruzados que coze no mesmo corpo perplexo IDM (no acrónimo inglês, lido de trás para a frente, quer dizer Música de Dança Inteligente), drum and bass, drill and bass (a versão drum com berbequins), jazz, jungle, breakcore, breakbeat, techno cheio de ácido e música impura ambiental. Como a velocidade é sempre veloz e as mudanças de direção súbitas e inopinadas, o resultado é um desafio permanente ao corpo, à mente e à exageração do transe pelo som.
Sozinho em palco à frente de duas paredes digitais, uma côncava e outra convexa onde desfilavam narrativas partidas de código infetado e cores inflamadas que pareciam estar a derreter, vestido com o escafandro branco de um esgrimista, o Squarepusher, palavra que quer dizer "empurrador de quadrados" em tradução literal, encurralou o público na sua digestão de chispas elétricas a saltar do prato em todas as direções.
Mas como se dança isto?
É uma música estranha e complexa, muito intrigante, de ritmos partidos, escalas interrompidas, descargas fora de tempo, e que obriga o espetador a reconstruir melodias que não parecem estar lá. Mas estão, metidas no meio dos seus tufões sem freios nem refrães, atapetadas no ruído estático da sua selva sónica, estão lá as melodias simples, habitualmente duas notas em variações de teclas, notas melancólicas que quase caem para lá da paisagem, quase invisíveis porque Tom Jenkinson lhes atira para cima um continente inteiro de breakbeats, ruído, fragor e desarmonia.
E tudo isto é impossível de dançar, evidentemente. Dançar debaixo daquela música IDM é como ser baleado ao mesmo tempo, sempre a perseguir o ritmo, ou a fugir dele porque ele avança como uma locomotiva em várias e simultâneas pistas, e permanecer ali é ser atingido por um vendaval digital de arritmias sobrepostas de ritmo que ninguém consegue alcançar ou adivinhar para onde vai. No fim houve palmas, e numa minoria entusiásticas, mas toda a gente ficou estática, era tarde, eram quase três da manhã.
Para quem, como, e muito bem, o Luís Guerra, do Expresso, diz ou pensa que o Primavera Sound do Porto já é demasiado "corporate" para os "indies" e que o popularíssimo Paredes de Coura está, com o seu esplêndido recinto, transformado "num festival para choninhas" sem rock, o Milhões de Festa é que é o verdadeiro festival dos melómanos - e dos melomaníacos. Dos de hoje e dos de amanhã.
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