Nuno Cardoso, encenador, estreia esta sexta-feira "Ensaio sobre a cegueira", coprodução com a Catalunha.
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Num sorumbático estado, Nuno Cardoso, diretor artístico do Teatro Nacional São João (TNSJ) acede a falar connosco. Nos últimos tempos fala "portucatalanhol" o dia todo, com o seu elenco equitativamente português e catalão para "Ensaio sobre a cegueira", obra que se estreia hoje, no Porto. Confessa-se cansado.
Como se não bastasse o clamor da estreia desta coprodução internacional, também tem em curso uma digressão nacional com "Espectros" (dia 23 em Torres Vedras) e uma "Oresteia", coprodução com o TnBA - Théâtre National de Bordeaux en Aquitaine, a arrancar em julho. Além disso há "os grupos independentes a braços com a Direção-Geral das Artes, o que significa que os dias têm sido muito longos". Mas ressalva: "Estamos preparados para isto, a equipa é extraordinária".
Um golpe de teatro
O repto chegou em 2019 quando Carme Portacelli, à época diretora artística do Teatro Español de Madrid, viu a sua encenação de "A morte de Danton". A vontade de trabalharem juntos foi mútua e Cardoso tinha na manga o centenário de José Saramago. Logo ali se desenharam algumas possibilidades.
Entretanto, Portacelli passa a dirigir o Teatre Nacional de Catalunya, mas manteve a vontade. Partem então os dois para um plano com "Ensaio sobre a cegueira" que fica traçado em novembro de 2019.
Cardoso insiste na data porque entende que o facto de adaptar semelhante obra a três meses de uma pandemia parece propositada. Não é. "Neste momento não temos de dizer às pessoas, "Imaginem o grau de angústia a incerteza". Elas já o sabem".
Antes disso, numa hora de encruzilhada, hesitou entre "Ensaio sobre a lucidez" e "Ensaio sobre a cegueira". Ganhou o segundo. Considerou "essencial ser uma mulher a única que vê na obra". Para fazer a adaptação convidaram a dramaturga Clàudia Cedó.
Mesmo com um elenco ibérico, Nuno Cardoso nunca teve a tentação de pegar em "Jangada de pedra". "Nunca seria adaptável, é um romance que me foge totalmente em termos de produção teatral. O teatro é feito de uma voz para 300 orelhas, o romance são uns olhos e o silêncio, é a decantação de um estilo para o outro".
A adaptação resultou em 200 páginas, 49 cenas e três horas de espetáculo. Quanto ao resultado, "já me dirão se funciona".
""Ensaio sobre a cegueira" é uma parábola certeira sobre a incapacidade de vermos o que está ao nosso lado. É a elaboração de toda uma narrativa do nosso Universo para justificar as grandes sevícias".
Cardoso acrescenta que encontra essas imagens quotidianamente. "Outro dia fui almoçar a um restaurante que está muito na moda e ninguém olhava para ninguém, toda a gente olhava para o telemóvel. Há uma cegueira sensorial e uma cegueira da razão na sociedade global. Um espelho de nós mesmos em que, quando não é devolvida a imagem que gostámos, há uma total falta de diálogo, porque os olhos estão parados".
Polimorfia linguística
A falta de prática democrática é representada em "Ensaio sobre a cegueira" por um elenco luso-catalão que funciona em modo coral e nas duas línguas, legendado. "O Teatro Nacional tem de estar atento à dramaturgia portuguesa e ao património, mas não é um trabalho de museologia. A língua é polimórfica, algo que já trabalhámos em "Castro Crioula". É uma prosódia ter os espectadores incorporados em linguagem dupla".
"Ensaio sobre a cegueira" estará em cena a partir de hoje e até 19 de junho, no TNSJ, onde regressará em dezembro. No outono terá uma longa temporada na Catalunha.