Já nos cinemas, “Portugueses” é uma ilha na obra de Vi ente Alves do Ó, já por si uma ilha no mapa do cinema português.
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Num puzzle de personagens, que vão passando o testemunho, o filme fala do período da ditadura, da libertação e dos primeiros anos da democracia, acompanhados com canções alusivas a esses momentos, terminando com um vasto grupo de intérpretes em cima do palco a cantar “Grândola, Vila Morena”. Estivemos a falar com o realizador deste musical à portuguesa.
“Portugueses”, no momento em que vivemos, não é um título demasiado ambicioso?
O que é ambicioso é ter um cinema que fale cada vez mais com os portugueses, o que não acontece muito por cá. O título é também uma provocação que lanço para o lado de lá, para que as pessoas vendo a sua pretensa nacionalidade como um título de filme, se questionem, se possam mesmo indignar, tentar saber mais, ir à procura. O cinema tem de criar estas dinâmicas. Temos de provocar.
Sempre foi esse o título, desde o início do projeto?
Confesso que não. O filme chegou a ter três títulos, e este foi o último. Bari o pé que queria este e toda a gente acabou por concordar comigo. O filme na sua produção, na sua feitura e consoante foi crescendo, as pessoas disseram-me que já não era só sobre o 25 de Abril, isso era uma desculpa. Resvalou para uma coisa que é sobre todos nós. Está aqui toda a gente, É uma espécie de coro, em que de vez em quando se levanta um solista aqui e ali, canta o seu verso e no refrão todos nós estamos juntos. E assumi que é sobre os portugueses, sobre nós todos.
Há um livro do José Gil, o filósofo, que tem um título que eu estou sempre a usar, que é “O Medo de Existir”. Sempre que penso em nós, penso muito nisto. Porque é que temos tanto medo de existir? É uma coisa que vem da ditadura, do Estado Novo? Acho que é anterior. Vem da Inquisição, da afronta de Dom Afonso Henriques de fundar um reino onde não devia? Nós somos um país com muitos medos. De assumir as coisas, de nos responsabilizarmos pelo que fazemos. Foi também por isso que quis um título que fosse também uma provocação ao espetador.
Acabando com o “Grândola, Vila Morena”, é um filme de esperança ou já apenas de nostalgia?
Sempre foi um filme de esperança. Eu sou uma pessoa positiva. E estou a descobrir que agora sou mais combativo do que era. É preciso sermos mais combativos. E sem medo das consequências que isso possa trazer à nossa vida. Nada derrotista, nada nostálgico. O que o filme tenta passar é que há muito trabalho a fazer. Passaram 50 anos, é verdade que temos autoestradas, saneamento básico, ensino obrigatório, coisas muito importantes para nos dar asas para voar. Mas começámos a voar de uma maneira um pouco desconjuntada.
Em que sentido?
Deram-nos muitas ferramentas, mas pensámos pouco sobre a sua utilidade. Será que o país mudou, que as pessoas mudaram? Ao fim de 50 anos e com o que se está a passar politicamente, temos de fazer estas perguntas. O filme levanta essas questões. Mas será sempre um filme de esperança, onde o Grândola terá sempre de ser cantado bem alto, e que diz que se for preciso vamos para a rua e batemos com o pé no chão.
Também é um filme de resistência, então.
Será sempre de resistência. Mas é um filme sobre nós. O 25 de Abril está lá, está esse período, mas podemos fechar os olhos e ouvir diálogos que fazem sentido ainda hoje. Para mim era muito importante não ficar preso nessa ideia da revisitação nostálgica do tempo. Já se fez muita ficção e muito cinema sobre isso. Eu queria resgatar esse passado para agora e perguntar às pessoas como é que é, o que é que a gente fez com isto. O que não fizemos ainda e temos de fazer.
O nosso catálogo de canções é riquíssimo, foi difícil escolher as que estão no filme?
Essa foi a parte mais difícil. De início comecei a pensar em canções e depois na estrutura do filme. Mas percebi que ficava refém das canções. Tinha as histórias na cabeça, os acontecimentos, as personagens. Pus as canções de lado e fui escrever o argumento, que é um puzzle montado, de estafeta, mostrando que apesar das diferenças sociais estamos todos ligados. E fui procurar para cada cena uma canção que pudesse substituir um diálogo ou incrementar aquele momento.
E como decorreu esse processo de escolha das canções?
Escolher as canções foi um inferno. As músicas são muito boas, os poemas são muito bons, eles escrevem todos muito bem. Como sou capricorniano, tenho de me impor regras, para conseguir levar as coisas até ao fim. Uma foi só ter uma canção de cada cantautor. Tinha de ter uma da Ermelinda Duarte, a única cantautora mulher que encontrei. E a única canção que me senti na obrigação de ter era o Grândola. Passei três meses nessa grande biblioteca musical que é o Youtube.
Houve algum momento em especial que queira partilhar connosco?
A “Cantata da Paz” tinha de estar. E porquê? Porque queria falar dos Católicos Progressistas, na Igreja do Rato, à minha maneira, claro. Queria fazer uma espécie de homenagem, queria iluminar aquele momento. Descobri que a “Cantata da Paz” do Fanhais tinha sido cantada lá, durante a greve de fome. O Zeca cantou-a lá. Era estranho não a ter.
Essa parte musical foi trabalhada com a Lúcia Moniz, que conhece há muito tempo.
A Lúcia Moniz é um anjo da guarda que tenho na minha vida. É uma mulher incrível. A Lúcia teve a sorte de ser filha do Carlos Alberto Moniz e da Maria do Amparo e ter um padrasto como o Samuel. Assim que comecei a pensar no filme disse-lhe que ia precisar da ajuda dela e falar com os pais e o padrasto, para lhes dizer a ideia que tinha. E adoraram a ideia e o conceito do filme. Eu não percebo muito de música, mas tenho bom ouvido.
Como ultrapassou essa dificuldade?
Precisava de alguém que fizesse os arranjos sem desmontar a melodia das canções. A Lúcia indicou-me o Fred Ferreira. Como não tinha lugar para a Lúcia, pedi-lhe para aparecer no fim. Foi uma coisa pessoal ter o filho do José Mário Branco a abrir e a filha
do Carlos Alberto Moniz e da Maria do Amparo a fechar. E precisava de uma pessoa, desde o casting, ensaios, gravações ao vivo, para quem pudesse olhar, como olho para o diretor de fotografia, e me dissesse que tinha gostado. E foi a Lúcia.
De todos os atores com que trabalhaste no filme, houve alguém que te surpreendesse pela sua voz?
Houve pessoas que convidei porque sabia que cantavam bem e já tinha trabalhado com eles. Mas tive um momento de casting. Não conhecia rapazes novos a cantar. Surpresa, surpresa, é nós estamos a cantar o Chaimite, com as crianças. A cena seria apenas o Chaimite a passar e os miúdos vinham atrás a cantar a cantiga da gaivota. Mas o ator que não se via começou a cantar e disse logo ao diretor de fotografia que tínhamos de acrescentar um plano dele a cantar. Chama-se David Esteves. Tem uma voz inacreditável.
Quando as canções começam, o filme passa de preto e branco para cor. Queres dizer com isso que a música pode salvar-nos o espírito?
É exatamente isso. Durante um momento o filme foi a cores, depois foi a preto e branco. E depois disse, a música salva-nos, a música é a única coisa que nos salva. Quando eles começam a cantar a realidade ganha cor. A cor vem quando a música vai. A música, naquela altura e ainda hoje, pode ser uma boa forma de intervenção, de resistência, de combate. E está na hora de o cinema também o ser. Precisamos de dizer coisas às pessoas. As pessoas precisam ir ao cinema ver-se ao espelho. Das coisas boas e das coisas más.