O dia em que a eletrónica foi melhor do que o rock e em que descobrimos a neo-soul de Arlo Parks.
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a bonomia, que é a bondade aliada à simplicidade de maneiras, é um nome feminino de efeitos extraordinários. Veja-se isto que aconteceu: estava Arlo Parks já embalada para finalizar o seu set, ia a meio da penúltima canção, a "Hope", corria tudo lindamente, o sol polia o céu a entardecer, a encosta regalada de público sentado, e de repente emudece tudo, ela, a banda, o som. Foi uma quebra técnica total e durou a eternidade de nove segundos.
Mas como é que o público reagiu? Com toda a bonomia obviamente: enquanto aquele silêncio problemático pairou, bateu palmas, cantou por ela - a canção que corria era a "Hope" e toda a gente cantou o refrão que diz, e muito apropriadamente "Tu não está sozinho como tu pensas que estás" - e fez tudo para a proteger do embaraço, sem um pio de protesto. Quando nove segundos depois o som voltou e a Arlo engrenou de novo na canção, o público desata numa cascata de palmas e de urras como se o concerto só agora fosse começar.
Arlo Parks, vulgo Anais Oluwatoyin Estelle Marinho, chegou aqui no seu pináculo: ela é a vencedora do Mercury Prize 2021, prémio que decreta o melhor álbum britânico do ano, ultrapassando Sault, Nubya Garcia, Wolf Alice ou Floating Points. É afetuosa e amigável, muito serena e cool, e a música do disco premiado, "Collapsed in sunbeams", que aqui ouvimos escorrer numa água cantante de pop neo-soul, encapsula a angústia e a agonia de crescer (ela tem 22 anos) de uma forma encantadora.
Eletrónica vs. rock
A memória futura do 4.º dia do Vodafone Paredes de Coura 2022 ocupará menos espaço no disco do hipocampo do que os que o precederam. O público é o melhor perito: esse dia menos memorável terá sido também o menos participado - o juízo é empirista, o festival não revela os dados específicos da bilheteira, só os gerais: média de 23 mil pessoas por dia, 115 mil ao fim de cinco dias.
Talvez isto explique, quem sabe?, porque terá sido o dia menos concorrido: houve uma mudança de género no eixo matricial do cartaz, menos rock, mais eletrónica. Mas, lá está, os melhores actos do dia, e os mais festejados, foram do segundo género e não do primeiro - o julgamento estético é sempre individual, essa é a única coisa que temos, a frieza do julgamento estético e a liberdade de dizer que isto é bom e aquilo é uma merda, como dizia Miguel Esteves Cardoso, o supremo da "escrítica pop", sapiencial.
Imaginemos: eletrónica vs rock, ringue de boxe, de um lado Kelly Lee Owens, do outro Ty Segall. Quem ganhou? A bela Kelly e por nocaute. Mas não foi com punhos nem com socos, foi com uma simples pena de quetzal na mão, derrotou-o com a força inarredável da beleza, como um cisne que se prepara para dançar.
Kelly faz música corporal electrónica, EBM na sigla original, mas embrulha-a em dream pop. As suas músicas são simples, é só um punhado de instrumentos eletrónicos: uma ou duas partes de sintetizador, três ou quatro sons de bateria e sua voz vaporosa, uma voz aérea e volátil de camadas filigranadas que depois ficam a reverberar - e a encosta de Coura transverteu-se numa discoteca hipercinética sexy varada de beleza.
Ty Segall também perde porque o seu stoner rock é um bife cru posto numa pedra fria - só serve convictos carnívoros: denso, espesso, opaco, compacto, incomunicante, o seu rock com a Fredom Band é um tristonho monólito de helicópteros a latir.
Da electrónica, mais dois píncaros (mas pequenos): Boy Harsher, que meteram a multidão íntima numa bolha viva de quadris, ombros e membros a balançar ao som da sua escuridão de synthpop e de synthpunk; e The Blaze, música french-house nítida
Com sintetizadores ascendentes e descendentes a dar-nos um estado de tensão que foi, a espaços, genuinamente comovente.