Festival Vodafone Paredes de Coura 2022 fecha com multidão compacta e cheia de juventude para ver os Pixies, formados há 35 anos. O concerto foi altamente combustível (nuns instantes), mas também foi um pastelão: durou 1h40 e devia ter tido só metade.
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O anúncio da morte prematura dos Pixies, a banda de Boston de 1986, de Black Francis e do casamento heterodoxo entre punk e surf rock, foi manifestamente exagerado. Dez minutos e seis canções depois de ter começado o concerto de Coura, a plateia era uma panorâmica surreal na massa maciça da frente: colados às grades só se viam espectadores com cara de 14 anos, visivelmente sobrexcitados; espalhados entre, bons metros atrás, sobressaiam pontos polvilhados de cabeleiras grisalhas que faziam headbanging (torso muito direito, cabeça a balançar freneticamente para trás e para a frente) e uma delas era de alguém que foi ao concerto de muletas - eretas e metálicas, abanava-as vigorosamente no ar (mas só uma de cada vez); por cima disto, num insólito crowdsurf exótico, passou um bote de borracha, que deslizou desde lá de cima da encosta até à boca do palco, com um espectador sentado lá dentro (é óbvio: o espectador estava histérico).
Esse momento foi definidor, foi o primeiro pico do concerto, durou três minutos, talvez exatamente três minutos e oito segundos. É tempo mais do que suficiente para os Pixies meterem lá dentro duas canções completas, que tocaram seguidas, uma soldada na outra: "Crackity Jones" (1"24"") e "Isla de encanta" (1"41""). As duas, uma de 1989, a outra de 1987, são o paradigma do peculiar "estilo Pixies": mudanças dinâmicas extremas e bruscas, tanto de tom como de volume, recurso abundante ao pára/arranca, ênfase continuo no alto contraste. Fosse o concerto todo assim, curto, intenso, polvoroso - aquelas canções levantaram tanta poeira que às vezes não parecia poeira; parecia um incêndio seco e que os espectadores, eles próprios, estavam a fumegar - e teria sido ótimo. Mas não foi sempre assim.
Eles os quatro entraram calados - bruaá instantâneo do público, palmas a estalar -, caras todas fechadas e assim seráficos começaram imediatamente a tocar ("Wave of mutilation", arrancada lenta). Até ao fim, mais de 100 minutos muito longos depois não dirigiram uma palavra ao público, não trocaram uma palavra entre si, saíram sem sequer regraciar - o máximo que tivemos foi um aceno de sinaleiro e um breve sorriso mudo de Francis Black.
O quarteto que toda a gente conhece, é característico pelas letras eriçadas de Black e o seu uivo de arrepiar, as harmonias sussurradas de Paz Lenchantin (que substituiu a expulsada Kim Deal original) e as suas linhas de baixo, grossas, gordas e movediças, a guitarra frágil de Joey Santiago e o fluxo persistente da bateria de David Lovering, que aqui e ali meteu o pé no prego. Mas é Black quem comanda tudo, aparentemente até o silêncio dos outros. E ele é peculiar: parece menos um cantor de rock do que uma impressão grotesca de um cantor de rock, muito zangado ou muito terno, é uma pantomima de extremos. Mas ainda atinge os velhos latidos e gritos de rock, especialmente em "Crackity Jones" e "Bone Machine" e ouvimos, e com prazer, os seus cacarejos falsos em "Mr. Grieves" ou "There goes my gun".</p>
Felizmente, a sua voz nunca tenta mimicar o seu eu da juventude; em compensação, os seus tiques permanecem tão cruciais e inseparáveis das músicas quanto os seus riffs líricos ou assanhados de guitarra. E ouvimos também, mas uma só vez, a voz de Paz Lenchantin, em "Gigantic", que imita bem a voz de Kim Deal mas não é a Kim Deal.
Três décadas depois, os Pixies não reinventam dramaticamente muitas de suas músicas, mas, em vez disso, dão-lhes passagens alternadamente ferozes ou burocráticas - "Monkey gone to heaven" foi totalmente assassinada, parecia estar a ser tocada por um quarteto de funcionários públicos contrariados. A reinvenção mais drástica terá sido a versão acústica de "Here comes your man" - que a plateia de Coura cantou em coro, sacando logo como uma mola -, que dá à música uma marcha caótica comandada pelo seu riff ascendente. Houve versões mais enxutas e muitas vezes mais agressivas de favoritos como "Planet of sound" ou "Hey!". Sem surpresa, estas músicas provam ser extremamente duráveis, mantendo toda a sua estranheza nervosa e explosividade, como também acontece com "Caribou".
Mas, meia hora depois de ter começado, o concerto caiu de tom, e abruptamente, e aí andou a rastejar outro tanto tempo, com incursões xaroposas por "Good times", "Vault of heaven", "Nimrod"s son", apagadíssimas, chatas, opacas, como também na repetição, agora em versão lenta, de "Wave of mutilation", tão lenta que esteve prestes a desintegrar-se, ou no desacerto agudo e cansado de "I bleed". E daí até ao fim, só a espaços o espetáculo se tornou a elevar - "I"ve been tired" ou "Where is my mind". Apesar da frouxidão da dinâmica e da adstringência do seu som, a banda revela uma devoção às músicas mais antigas, uma devoção de certa forma afetuosa.
Hoje, os Pixies soam diferentes e soam muitas vezes a estafa. Talvez se sintam maiores agora, mais reverenciados, talvez porque agora atuem em salas e festivais maiores e para multidões mais jovens e entusiasmadas, ou talvez porque tenham sido identificados como os pais ancestrais de grande parte do indie-rock de hoje.
A desvantagem deste ressurgimento é que é difícil pensar nos Pixies no tempo presente. Eles agora são já rock clássico, e a antiguidade não é posto, sobretudo sabendo-se o pouco material novo ou excitante que estão a gerar. Hoje, os Pixies trilham uma linha do tempo ténue entre abraçar o seu legado e lutar contra o passado para não cristalizarem na extinção.
Mas hoje, 35 anos desde a edição do primeiro disco, comprovou-se agora em Coura, os Pixies são mais excitantes para quem tem 14 anos do que para quem viveu a juventude com eles nos três anos intensos dos melhores três discos, "Come on pilgrin" (1987), "Surfer Rosa" (1988) e "Doolittle" (1989), os únicos dos Pixies de que precisamos para viver.
Uma hora e 40 minutos de concerto depois, tudo tocado em jorro contínuo, sem qualquer interação, sem surpresas, sem sequer, vá lá, um acidente qualquer que nos retirasse da modorra, a sua música, que já foi altamente combustível, redunda num pastelão carregado pela boca, demasiado indigesto para entrar inteiro na memória. Da próxima vez, a havê-la, metade do tempo de duração, ou menos, por favor, eles também ficam a ganhar.