Nuno Cardoso, do Teatro S. João, encena "Ensaio sobre a cegueira" um mês em Barcelona. Estreia foi entusiástica.
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Nuno Cardoso, o encenador de 52 anos que dirige o Teatro S. João, do Porto, partilha notas com os atores enquanto mexe os braços como um polvo a flutuar. Eles são 14, estão sentados em U, sete portugueses, sete catalães, são duplos uns dos outros, envergam roupa interior rasgada e surrada como se viessem do apocalipse. Estamos em Barcelona, Espanha, numa sala pequena do grande Teatro Nacional da Catalunha (TNC), a meio do ensaio depois das cenas da violação das mulheres cegas pelos homens cegos. "Atenção, não comecem a fod** antes do tempo!", diz o encenador a misturar animadamente português e espanhol. "É tudo uma questão de tempo; a cena é violenta, violenta, violenta, sempre em crescendo, mas o êxtase final tem de coincidir com o momento da mulher do médico a matar um dos violadores [com tesouradas no pescoço]!", esbraceja o encenador. A seguir discutem o tempo de barulho das molas das camas a chiar até ao clímax rebentar - e todos voltam, como fantasmas ou arcanjos roídos, aos seus lugres no palco do TNC, que tem à porta, muito propriamente, a palavra "Consciência" em néon verde a brilhar.
É a peça "Ensaio sobre a cegueira", o romance visionário que José Saramago escreveu em 1995 sobre o "Mal branco" que virá mortificar o Mundo, uma parábola visceral sobre o desfiladeiro em que caminhamos e vamos cair porque, de repente, como numa pandemia, toda a humanidade fica cega e só vê um abismo branco devorador de mal.
Nas primeiras páginas há a cegueira que chega como um vírus e rói tudo. É o caos, a violenta prostração. Depois os cegos são trancados num manicómio, são só espetros, levanta-se o estado marcial. Mais páginas passam e os cegos, como doentes terminais, já agem como animais. Mais algumas páginas e os cegos já violam, como bestas. Depois aparece uma cidade apocalíptica e melancólica e finalmente volta a erguer-se o sol. Haverá esperança?
Coproduzida entre os dois teatros nacionais, a peça inaugurada em junho no Porto estará agora em cena um mês seguido em Barcelona, e é falada nas duas línguas, português e catalão, com legendas, num engenhoso jogo de duplos da grande jangada ibérica. Estreada anteontem com o TNC a apinhar os 900 lugares, com a primeira semana já esgotada, a peça teve uma receção entusiástica, com vários minutos de palmas no final.
Num manicómio mundial
"Saramago era um visionário, a sua pandemia de cegueira, mais metafórica do que física, tem muitas conotações vivas com o presente egoísta", diz Nuno Cardoso, que escolheu encenar a peça antes da gadanha da pandemia chegar. "Vivemos uma época muito dolorosa, saímos de dois anos de confinamento, de um esforço para superar uma doença e uma ameaça social mortal. E estamos agora aos pés da guerra russa à Ucrânia e das tensões nalgumas democracias europeias, veja-se a Itália, que virou à extrema-direita e parece estar em 1922. E tudo vai ainda piorar. A democracia está a ser substituída pelos cantos de sereia do dinheiro, e não há distribuição de riqueza. Vivemos numa cegueira total, de alma e de coração e Saramago pressentiu já nos anos 90 aquilo que estamos agora a viver". E Nuno Cardoso repete, fatal: "Estamos cegos, estamos fechados num manicómio mundial e, se não acordarmos, vamos piorar".
Pilar emociona-se
Pilar del Río, presidente da Fundação Saramago e viúva do escritor, estava na primeira fila do TNC, emocionada. "Encantada", disse e repetiu com a mão no coração "Saramago, de quem celebramos agora o centenário de nascimento, escrevia como se compusesse música, uma pausa curta, outra longa, um contraponto. Esta forma de escrever aproxima muito a obra dele do teatro, estou encantada com a adaptação".
"Saramago é um escritor muito teatral", diz agora Claudia Cedó, que passou a peça para teatro. "Houve algo de muito natural no processo de adaptação". A dramaturga espanhola diz que chorou sempre que releu o livro: "Quando acabamos de ler, estamos em harmonia com a nossa espécie".