Dos 0 aos três anos, dos três aos seis, até aos dez, e depois até aos 15 e aos 18. Uma pediatra e uma psicóloga infantil descrevem, ao detalhe, o que uma criança e jovem sentem quando os pais não largam os ecrãs e os sinais que emitem quando estão a exagerar. Neste dia da Criança, a 1 de junho, mude os hábitos
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Multiplicam-se os estudos de que as redes sociais e os ecrãs sem qualquer vigilância fazem mal às crianças e aos jovens. Contudo, este não é o único problema. O exemplo dado em casa pelos pais, ele próprios os primeiros a terem dificuldades em largar os telemóveis, pode ser igualmente nefasto.
Os efeitos deste comportamento alienante por parte dos progenitores e mais comum do que o que possa imaginar deixa marcas muito concretas em cada idade de desenvolvimento das crianças. “Quando os pais estão excessivamente ligados ao mundo virtual e aos ecrãs e desligados do seu papel parental, as crianças sentem-se emocionalmente invisíveis. Isto interfere com o seu desenvolvimento social e emocional, cognitivo e linguístico, moral e sensorial, e no ambiente familiar. A mudança começa com a consciência parental e no compromisso em criar momentos de verdadeira conexão”, pede, em resposta por escrito à Delas.pt/Jornal de Notícias, a psicóloga da infância e da adolescência, Marta Calado.
Importa definir regras em casa para travar ou minimizar esta escalada negativa no agregado familiar. Entre as recomendações, a pediatra Mariana Capela pede para que, “durante refeições, todos os dispositivos devam estar fora de alcance”, para que os progenitores “reservem um período diário de interação exclusiva (sem ecrãs)” e que sejam “criadas zonas livres de ecrãs – como o quarto ou a sala de jantar”. A estes medidas somam-se outras segundo as quais os pais devem “evitar o uso passivo de redes sociais na presença dos filhos – se precisarem de usar o telemóvel, devem avisar a criança ("vou só responder ao trabalho e já falo contigo") -“, “desligarem notificações não urgentes para não serem interrompidos” e “mostrarem equilíbrio, autocontrolo e dar prioridade ao tempo em família”.
A psicóloga infantil sugere que “os adultos devam adquirir consciência e treino das seguintes competências-chave: presença emocional, uma vez que a qualidade da presença é mais importante do que a quantidade; regulação digital, saber quando e como usar a tecnologia com moderação; empatia e escuta ativa, ou seja, validar as emoções dos filhos com disponibilidade e envolvimento; comunicação aberta, criar um espaço seguro para o diálogo; capacidade de colocar limites, dizer “não” a ecrãs quando é hora de conexão humana; servir como o melhor exemplo e testemunho de modelagem dos filhos.”
Veja agora os riscos da sobreposição dos pais aos ecrãs e os efeitos que têm nas crianças e o sinais que devem fazer ecoar todas as campainhas.
Dos 0 aos 3 anos: pouco contacto visual e atrasos na fala
“Vinculação insegura” e “pobreza de estímulos - uma vez que o bebé precisa de contacto visual, de expressões faciais, de vocalizações e do toque físico, associados ao investimento cúmplice e constante das interações entre o adulto -“ são dois dos riscos mais comuns decorrentes das horas a mais passadas em frente aos ecrãs por parte dos pais e diante da presença dos filhos.
Para a psicóloga infantil da Clínica da Mente “se os pais estão distraídos com o telemóvel, não estão disponíveis para prestar atenção e dar resposta a esses sinais do bebé e não respondem de forma sensível e recíproca”. Atitudes que estão, por isso, associadas efeitos como “atrasos na linguagem e a um desenvolvimento social e emocional medíocres”. “Se os pais estão constantemente distraídos por ecrãs, podem falhar em responder adequadamente aos sinais da criança (fome, desconforto, necessidade de afeto), gerando insegurança”, acrescenta Mariana Capela.
A pediatra do Hospital dos Lusíadas alerta ainda para a eventual “perturbação do sono: O uso de ecrãs à noite pelos pais pode perturbar rotinas e o ambiente propício ao sono infantil”.
Entre os sinais de alerta, esta médica aponta comportamentos como “a criança evita o contacto visual”, há “pouca vocalização, balbucio ou resposta emocional” e pode existir “regressão em marcos de desenvolvimento”. A regra, nesta fase, é a do “não uso de ecrãs”.
Dos 3 aos 6 anos: Birras, tristeza e comportamentos exagerados
Se está diante de comportamentos como “birras frequentes para obter atenção, apatia, tristeza, retraimento social e comportamentos "exagerados" para chamar a atenção”, como enumera Mariana Capela, não deve descartar o excesso de ecrãs… dos pais das crianças.
Marta Calado fala ainda em ”riscos” de “comportamentos de oposição ou regressão”. E exemplifica: “A criança grita ou atira brinquedos porque os pais não lhes estão a prestar atenção”. “Por outro lado, pode evidenciar-se um défice de competências sociais atendendo ao menor tempo de jogo simbólico ou partilhado com os adultos de referência. Se os pais privilegiam o tempo com os ecrãs, a criança imita o comportamento, pelo que, existe um maior número de casos registados com perturbações do sono e excesso de exposição a estímulos digitais”, refere a psicóloga Infantil.
Mariana Capela fala na fase do exemplo, lembrando que “se os adultos estão constantemente ligados aos ecrãs, a criança aprenderá que o digital tem prioridade sobre as relações humanas”, e alerta para a menor capacidade de autorregulação por parte dos menores: “Falta de atenção parental pode dificultar o desenvolvimento de estratégias saudáveis de lidar com emoções.” A especialista recomenda, por isso, nesta fase etária um “uso mínimo de ecrãs, sempre acompanhado”.
Dos 6 aos 10 anos: Autoestima baixa, amizades difíceis, maus resultados
Nova faixa etária, a da idade escolar, novos desafios, novos problemas. A falta de vinculação entre filhos e pais devido aos ecrãs e à falta de atenção trazem agora problemas ainda mais severos e que comprometem a forma como as crianças jaze mostraram capazes ou incapazes de fazer amigos. Mariana Capela aponta para os problemas da “desvalorização das relações familiares, com a criança a poder sentir que a atenção parental está sempre dividida”, da ”dificuldades na autoestima por via de se sentirem "em segundo plano” e do “comprometimento académico e social, com a ausência de envolvimento parental afeta o rendimento escolar e a gestão de amizades”. “Isolamento emocional”, alerta Marta Calado. A psicóloga fala em “desinvestimento das tarefas físicas, sociais e escolares, menor apoio na execução e na supervisão dos adultos” e “os estímulos associados à escola são percebidos como aborrecidos e desinteressantes”.
Dos 10 aos 15 anos: dependência digital, conflitos familiares
“Se os pais valorizam excessivamente as redes sociais, os filhos podem seguir o mesmo padrão, o que acarreta risco de dependência digital”, refere a psicóloga da infancia, que aponta para o risco de maior afastamento entre pais e filhos devido a sensação, por parte destes, de “rejeição ou distância relacional”. “O adolescente deixa de procurar os pais para conversar e passa a ter como modelos de referência formativa e pedagógica os influenceres digitais”, acrescenta.
Começam os “conflitos familiares”, atesta Mariana Capela. “A discrepância entre o discurso (“não estejas sempre no telemóvel”) e a prática dos pais pode gerar frustração e afastamento”, exemplifica. A pediatra fala numa eventual consolidação do comportamento por imitação dos pais - modelagem de comportamento digital - e “isolamento emocional”. O que os jovens não encontram em casa vão procurar por referências e validação nas redes sociais.
Dos 15 aos 18 anos: Ansiedade, depressão e distúrbios de imagem
Quebra na comunicação, com os pais a continuarem ausentes, e a desconexão familiar trazem “afastamento” e diminuição “da capacidade do jovem em partilhar dúvidas, angústias ou riscos (como cyberbullying, sexting, e outros)”, indica Capela. Somam-se, depois, os “problemas de saúde mental”, com “negligência emocional, mesmo que não intencional, a contribuir para ansiedade, depressão e baixa autoestima”.
Marta Calado concorda e adita: “Quadros de ansiedade, depressão e perturbações de imagem corporal”. “São vários os casos de jovens isolados no quarto, com angústias, dúvidas e inseguranças nas diferentes áreas de vida, e os pais não compreendem o seu verdadeiro sofrimento porque estão absortos no seu mundo virtual, profissional e na crença de estar a fazer tudo em prol da parentalidade”, analisa a psicóloga. Talvez ainda exista margem de recuperação. Mariana Capela recomenda a “co-construção de regras e respeito mútuo, com diálogo e confiança”.
Os efeitos deste comportamento por parte dos pais na vida dos filhos são transversais e vão deixando marcas ao longo das várias fases da criança. “A tristeza, apatia ou choro, sem motivo claro, são frequentes, especialmente após tentativas frustradas de interação com os pais, assim como a raiva e frustração exageradas, diante de pequenas situações, muitas vezes como reflexo de frustração emocional acumulada”, sintetiza Marta Calado. Realidade a que se junta, “em muitos casos, ciúmes de irmãos ou outras pessoas que recebam atenção dos pais, busca constante por validação ou aprovação dos adultos e dificuldade em brincar ou socializar com outras crianças”.
Experimente dizer a partir de hoje, dia da Criança, 1 de junho, “vou pousar o telemóvel porque é hora de brincar contigo!”, pede a psicóloga.