"O Arquiteto é a história de mulheres que lutam juntas e não a história de um homem"
Nova série de época da TVI traz a história de um arquiteto, nos anos 90, que numa vida dupla, filmava relações sexuais sem consentimento das envolvidas, fazendo ecoar o caso Tomás Taveira. Autora e protagonista recusam semelhanças com escândalo sexual que abalou a sociedade portuguesa
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As filmagens de relações sexuais sem consentimento das mulheres é o tema central da nova série da TVI, O Arquiteto, que evoca o escândalo que abalou a sociedade portuguesa no início dos anos 90 do século passado. Na altura, recorde-se, o reputado arquiteto Tomás Taveira tornava-se notícia nacional e internacional por ter gravado em vídeo relações sexuais com mulheres sem que elas tivessem dado qualquer autorização.
A autora da trama, Patrícia Muller, que vai ser exibida diariamente até sábado reitera que "O Arquiteto é a história de mulheres que lutam juntas e não a história de um homem", "de mulheres que se mobilizam para impedir algo de muito grave que estava a acontecer na vida delas".
"Por mais fatores públicos que existam e que sejam levemente inspiradores, eu inventei muita coisa. Sou ficcionista, não estou a fazer a história de ninguém, na minha ficção falo de mulheres que foram ultrapassadas, que sofreram abuso de confiança e que ficaram com a vida destruída", reitera.
A polémica em torno desta produção da TVI não é de agora, com vozes críticas a condenarem a eventual "glorificação" de uma história difícil da sociedade portuguesa para as mulheres. Hoje, após estreia da série e que somou 5,9% de audiência média e 14,9% de quota de mercado, Patrícia Muller crê que quem viu já percebeu que "o que está a ser feito é refletir, é pensar sobre o tema do consentimento" num caminho de "#metoo à portuguesa, com alguns casos".
O protagonista da série, Rui Melo, não presta quaisquer declarações sobre este trabalho - em que dá vida a um arquiteto dos anos 90 que filma as relações sexuais sem o consentimento das mulheres envolvidas - ou sobre as reações que recebeu assim que a série foi anunciada, mesmo depois de o humorista e apresentador Nuno Markl ter denunciado uma "fúria instagrâmica" sobre o ator, a equipa da série e a TVI".
O radialista lamentou que "as pessoas que não tinham visto a série tenham metido na cabeça que ela iria fazer do protagonista um herói". Rui Melo remete para a única declaração pública que fez sobre o caso e que publicou no Instagram, na segunda-feira, 22 de setembro. Nela vincou que defende "a discussão por oposição ao silêncio". "Interessa-me o dedo na ferida. E a denúncia. Sempre. É uma obra de ficção, escrita pela Patrícia Muller, uma mulher. Sobre mulheres", escreveu.
A autora diz ter escolhido os anos 90 como momento histórico porque "quis, de alguma maneira, mostrar o contexto da época e mostrar algumas personagens como se fossem nos dias de hoje".
Rui Melo interpreta o arquiteto Tomé Serpa (Foto: FIlipe Ferreira/TVI)
"Se a fizesse sobre hoje, não seria igual. Mudaria, se calhar haveria um processo, uma sala de tribunal". "Isto é uma ficção para nos pôr a pensar sobre os limites do consentimento, sobre o que é sermos uma sociedade civilizada e que deve promover o bem-estar geral", refere a guionista, que espera que, com esta trama, as "pessoas que já passaram por situações que olhem para ela e pensem 'eu não tive culpa'. Por isso é que surge a APAV no final, para ajudar alguém que se sinta em algum momento desmoralizada, maltratada, e injustiçada, é uma luta que tem de ser coletiva."
"Estas histórias magoam-me imenso"
O não consentimento nas relações sexuais é para, Patrícia Muller, uma das matérias que a indigna, pelo que escolheu abordar o tema. "Graças a Deus, nunca me aconteceu, mas ver que acontecem magoam-me imenso, picam-me por dentro." A autora recorda episódios próximos que, de certa forma, contribuíram para o que viria a desenvolver no âmbito da série O Arquiteto. "Uma rapariga de 12 e 13 anos, da escola do meu filho, mandou umas nudes e o namorado dela fez circular as fotos por todo o lado. A miúda ficou com a cabeça toda estragada, mas a ele não lhe aconteceu nada. Também na minha turma, na escola, uma colega teve um affair com uma pessoa, fizeram coisas, e ele contou aos amigos e a história circulou por Lisboa inteira", desfiou.
Nesse sentido, a guionista pede que se transforme o "consentimento numa luta coletiva e não individual, e quem não der valor a isto, então não vai entender o objetivo principal da série". "Hoje em dia, deveria haver uma abertura, perceber o que mudou, o que é consentimento e o que podemos fazer para melhorar. Isto é uma ficção, pensem sobre ela", acrescenta, lamentando que, "enquanto portugueses e como sociedade, ainda tenhamos dificuldade em reviver os nossos fantasmas coletivos, e não se fala nisso".
Sem segunda temporada de O Arquiteto prevista ou expectável, para já, Muller anuncia que o tema de como as mulheres ainda hoje são tratadas pelos homens vai continuar a ser trabalhado por ela. "O próximo romance é sobre homens que têm comportamentos estranhos sobre mulheres, um problema que, hoje em dia e com as redes sociais, está a proliferar como cogumelos", avança, num livro que tem data de chegada para 2026.