Os efeitos estão por estudar, mas na Grã -Bretanha os menores de 12 anos já não treinam de cabeça.
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Não há nenhum estudo científico capaz de estabelecer uma relação entre a prática do futebol e a morte com uma encefalopatia traumática crónica (doença degenerativa progressiva do cérebro), ou uma causa/efeito entre praticar futebol e sofrer de uma doença neurológica, apesar das ligas inglesa, escocesa e irlandesa terem decidido limitar o cabeceamento em treinos a menores de 12 anos. Nesta altura, o International Football Association Board está a investigar os efeitos dos "cabeceamentos", antes de avançar com quaisquer medidas. Os avanços nesta área tornam-se ainda mais difíceis, porque só é possível diagnosticar uma encefalopatia traumática crónica com análises ao cérebro, depois de um indivíduo morrer.
Se a "doença do pugilista" já não deixa dúvidas quanto às suas causas, dizer que o cabeceamento de uma bola pode provocar o mesmo tipo de lesões está longe de estar provado.
Diferentes são os choques entre jogadores, com o chão, ou um poste. Nesses casos está definido um protocolo que obriga à substituição do atleta depois de avaliado pelo médico. Mas o facto de se desconhecerem as consequências não implica que não se aborde a questão com precaução, até porque um estudo da Confederação Brasileira de Futebol, que monitorizou as lesões mais comuns no campeonato brasileiro de 2019, diz que a cabeça foi o segundo local do corpo com maior número de lesões diagnosticadas (14%), depois das lesões musculares nas coxas.
Para se avançar com estudos, os especialistas apontam a necessidade de se levar em consideração a força do impacto, a frequência do impacto e os intervalos entre os traumas, que podem não dar tempo ao cérebro para recuperar. O que se sabe é que um paciente afetado por uma encefalopatia traumática crónica desenvolve sintomas parecidos com Alzheimer, perda de memória e dificuldades para raciocinar. Outros, apresentam transtorno bipolar e há os casos descritos em que o paciente desenvolveu vícios fortes em apostas, álcool ou outras drogas.
De acordo com estudos desenvolvidos pelo Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, um dos mecanismos que pode contribuir para desenvolver uma encefalopatia traumática começa quando o impacto na cabeça é suficientemente forte para afetar o equilíbrio neuronal e influenciar a proteína TAU que, entre outras funções, estabiliza a estrutura dos neurónios e auxilia o transporte de nutrientes entre células. Com choques repetidos, ou impactos com intervalos reduzidos, essas proteínas podem libertar-se da sua estrutura (microtúbulos) e acumular-se no cérebro. No limite, essa acumulação não só é tóxica para o cérebro, como está associada a várias demências e à fase de agravamento da doença de Alzheimer. Mas está por comprovar que o impacto de uma bola tenha força suficiente para provocar isso.
Fala Quem Sabe
Questão 1: Os impactos na cabeça provocados por uma bola têm potencial para provocar lesões?
Questão 2: Que perigos estão concretamente identificados quando se cabeceia uma bola?
Questão 3: Que sentido faz proibir crianças, até aos 12 anos, de cabecear bolas?
Rui Vaz, neurocirurgião e professor catedrático
1. Não há nenhum estudo que demonstre que cabecear a bola tenha um risco acrescido de doenças cerebrais, ou um risco acrescido de demência. Só um estudo poderia demonstrar que as crianças que jogam futebol têm um rendimento intelectual menor, ou doenças mentais. Mas não há evidência científica disso.
2. O bom senso diz que as pancadas na cabeça poderiam provocar alguma disfunção cerebral, mas vamos imaginar dois jogadores que chocam com a cabeça no decorrer de um jogo de futebol. Esses jogadores devem sair de campo. Isso está previsto e demonstrado que a força do impacto passou para dentro do osso, porque ficou zonzo ou perdeu os sentidos. Outra coisa é quando esse impacto não tem força suficiente para atingir o cérebro, porque fica retido no osso.
3. Faria sentido sim, investigar mais nessa área. Acho bem que se modifique a pressão e o peso da bola, conforme as idades. Mas isso devia levar a um estudo e não a tomar medidas prematuras sem evidências científicas.
Alberto Caldas Afonso, pediatra e professor catedrático
1. Tudo depende da força do impacto, sendo que um impacto violento pode provocar lesões associadas ao traumatismo craniano. O traumatismo pode originar fractura craniana com contusão. Mas terá, repito, que ser um impacto violento.
2. Os perigos estão na dependência da violência do impacto como disse anteriormente.
3. Não se deve proibir as crianças com menos de 12 anos de jogar à bola e cabecear. Jogar futebol é um dos desportos mais praticados pelas nossas crianças, pelo que jogado sem violência pode ser praticado.
Henrique Jones, médico de medicina desportiva
1. Depende da energia cinética, velocidade e distância aquando do trauma. Enquanto a maioria destes impactos é autolimitada com sintomas iniciais que rapidamente desaparecem ou podem perdurar uma semana, existem alguns estudos [que não especifica as crianças] que estabelecem relação de sequelas neurológicas a longo prazo que poderão ter origem em pequenos impactos repetitivos.
2. Existe alguma evidência de que as crianças e adolescentes sujeitos a concussão estão mais expostos a lesões cerebrais, porque o seu cérebro está numa fase de desenvolvimento. Uma bola de futebol pode atingir a cabeça com força significativa e existe muita controvérsia sobre os cabeceamentos repetitivos e a possibilidade de lesões cerebrais.
3. É uma questão que gera controvérsia. Cabecear a bola faz parte do jogo de futebol. Mas ainda não se conseguiu provar que os cabeceamentos tenham implicações imediatas, ou a longo prazo, na função, ou estrutura, cerebral. São necessários mais estudos que permitam perceber as reais implicações do contacto da cabeça com a bola.
Vários jogadores já morreram com doenças neurológicas
Jack Charlton, Bobby Charlton, Denis Law e José Torres são alguns jogadores que envelheceram a sofrer de Parkinson, Alzheimer, demência ou outras doenças neurológicas.
Em 2018, concluiu-se que Jeff Astle, antigo jogador do West Bromwich, tinha falecido na sequência de um traumatismo cerebral causado por bolas de couro pesadas utilizadas na década de 1960. Outro antigo futebolista, Rod Taylor, morreu em abril de 2018 com o mesmo problema. Estes e outros casos foram o ponto de partida para que, nos Estados Unidos, em janeiro de 2016, fossem estabelecidas regras que proíbem o cabeceamento em jogos e treinos abaixo dos 11 anos. Mais recentemente, em 2020 as ligas de Inglaterra, Escócia e Irlanda adotaram as mesmas medidas.
Segundo um estudo da Universidade de Glasgow feito com base nos registos de saúde de 7676 ex-futebolistas e outras 23 mil pessoas, os ex-futebolistas tinham 3,5 vezes mais probabilidades de morrer de doenças cerebrais do que outra pessoa. No entanto, o estudo não estabelecia qualquer causa/efeito, nem sugeria que cabecear uma bola em idade juvenil se revelasse um fator decisivo para se sofrer de doenças cerebrais.