O retrato do país que vai receber o Mundial 2022 e que é um dos mais ricos do Mundo, graças ao petróleo e ao gás natural. Rege-se pelo Islão mais fundamentalista e é acusado de vários atentados contra os mais básicos Direitos Humanos. A maioria da população é estrangeira e todos têm acesso a Educação e a cuidados de saúde de forma gratuita.
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Numa entrevista ao jornal "La Nacion", Jorge Valdano, ex-jogador e ex-treinador, campeão do Mundo pela Argentina, escritor, jornalista e entrevistador, lamentou uma espécie de "polícia cultural". Recordou que "as conquistas sociais do Ocidente também custaram trabalho e tempo" e defendeu uma "influência da melhor maneira possível e não a partir da condenação permanente", salientando que "não podemos exigir que o mundo se pareça connosco num estalar de dedos". Esperava ser "bem interpretado" nas observações. Mais ou menos desde 2010, essa tal "polícia cultural" tem estado muito ativa e não tem parado de visar um alvo bem definido e tão a jeito: um dos países mais ricos do Mundo, estranhamente escolhido para organizar o Mundial 2022.
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Por um lado, o tamanho e o escasso desenvolvimento: nessa altura, o Catar ainda era pouco mais do que um deserto, praticamente não tinha estádios, infraestruturas desportivas, hotéis, estradas ou redes de transportes; por outro lado, a decisão da FIFA entregava a maior e mais importante competição de futebol a um dos países mais conservadores e retrógrados do Mundo, governado com mão ditatorial, acusado de violar os mais elementares direitos humanos, onde as mulheres são vistas como seres menores e a homossexualidade é proibida e punida por lei, onde legislação contempla a pena de morte, onde a liberdade de expressão e de imprensa está demasiado limitada, onde os trabalhadores são explorados.
Tudo isto já era mais ou menos claro quando a FIFA preferiu a candidatura catari. Por isso, para uns, a escolha foi e é inaceitável, inconcebível. Outros há que preferem ver o copo meio cheio e esperam que a competição proporcione a oportunidade de abrir os horizontes do Catar, de quem lá vive e de quem o governa, tornando-o mais tolerante, mais respirável, mais igualitário e menos preconceituoso. Mas, como defende Jorge Valdano, não basta estalar os dedos. Nem 12 anos chegam, aliás. O Catar de hoje - aquele que quer, pode e faz, que até controla clubes de futebol (Paris Saint-Germain à cabeça), que tem dinheiro que nunca mais acaba graças a infinitas reservas de petróleo e de gás natural - é praticamente igual ao de 2010.
Exploração e desigualdade laboral
Desesperados pela pobreza e pela miséria, milhares de pessoas deixaram os países de origem (Nepal, Sri Lanka, Índia, Bangladesh, Paquistão, entre outros) e confiaram que o Catar lhes permitisse uma existência mais digna, com mais dinheiro e mais qualidade de vida. Esta crença, que, em muitos casos, se revelou ilusão e desespero, é uma das explicações para o facto de a maioria da população a viver no país ser estrangeira, com os cataris, de acordo com dados oficiais de 2020, a representarem apenas 12% da mesma: estes e uns quantos ocidentais são os privilegiados e a outra ponta de uma desigualdade repugnante. (Aqui, no entanto, há que dizer que o Catar não é uma exceção num Mundo exemplar...) A diversidade étnica e cultural aumentou nos últimos anos, com as obras e a organização do Mundial 2022 a convencerem muitas pessoas, principalmente dos países mais pobres da Ásia, a procurarem um presente e um futuro mais risonhos, dispostos e preparados para fazerem quase tudo. Só não esperavam a desfeita que lhes caiu em cima.
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Reportagens, estudos, relatórios e testemunhos têm denunciado vários abusos laborais diretamente ligados ao Campeonato do Mundo. Salários baixos e muitas vezes por pagar (em alguns casos, os atrasos chegaram aos 12 meses), condições de vida degradantes, horários inconcebíveis e jornadas de trabalho esgotantes, promessas incumpridas, contratos ilegais, taxas suspeitas e impedimentos para mudar de emprego ou deixar o país são algumas das queixas e das acusações que têm caído em cima do Catar. A mais grave, contudo, diz respeito à morte de cerca de 6500 trabalhadores, vítimas de ataques cardíacos, fraqueza ou desidratação. As autoridades do país têm desmentido a maioria destas notícias trágicas, mas, recentemente, a Amnistia Internacional alertou que "nada tem sido feito" para mudar o paradigma e que "as condições de trabalho inseguras persistem". Em agosto, dezenas de trabalhadores protestaram contra salários em atraso. Acabaram detidos.
Claro que esta realidade não é comum a todos os estrangeiros. Aos ocidentais, que rumam ao país para trabalhar no futebol, em grandes cadeias de hotéis ou em grandes empresas, são prometidas e cumpridas todas as regalias, desde salários principescos e estadias em casas de luxo ou condomínios fechados, para além de motorista, carros topo de gama ou vagas nas melhores escolas para os filhos.
Mulheres presas aos homens
George Orwell diria: todos os cataris são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros. Ou outras, neste caso. O salafismo é um dos movimentos mais ortodoxos, conservadores e fundamentalistas do Islão e uma das consequências diretas dessa abordagem à vida é o papel e a importância dada às mulheres. Não é que não possam fazer o que querem, porque podem. Desde que sejam autorizadas por um homem. Até aos 25 anos, viajar ou estudar só com autorização do pai ou do marido. Conduzir ou casar só se o pai deixar. Ou um irmão ou até um tio. No fundo, qualquer figura masculina. Se se quiserem divorciar, têm que recorrer a vários tribunais, ao contrário dos homens, sabendo de antemão que ficarão sem ter direito à guarda dos filhos. Também têm que aceitar o facto de o marido poder ter outras esposas, ao contrário delas, que devem fidelidade total ao esposo sob pena de serem fortemente punidas.
Ainda assim, de acordo com uma investigação da Human Rights Watch (HRW), publicada em 2021, "as mulheres no Catar têm quebrado barreiras e alcançado progressos significativos, inclusive na educação, onde agora há mais mulheres formadas do que homens, apesar de continuarem a enfrentar discriminação profunda em quase todos os aspetos das suas vidas". Um dos testemunhos obtidos de várias mulheres para a reportagem conta que "apenas estava autorizada a ir para a escola e voltar a casa, se fizesse outra coisa podia esperar uma tareia". "Tudo o que tenho que fazer está ligado a um homem", resume outra.
Em espaços públicos, têm de andar o mais vestidas possível. Saias, calções, camisolas de alças, peças de roupa muito justa ou que deixam muita pele à vista estão proibidas para as locais e são desaconselhadas para as mulheres estrangeiras.
Homossexualidade: "doença" e crime
Por incrível que pareça, no Catar há quem possa ter uma vida ainda mais lamentável do que as mulheres. A homossexualidade não é apenas vista como "doença mental", tal como expressou há poucos dias Khalid Salman, um dos embaixadores do Mundial 2022, como pode ser punida até sete anos de prisão. O Artigo 296 do Código Penal do país esclarece que "instigar ou seduzir um homem, de qualquer forma, para cometer sodomia" e "induzir ou seduzir um homem ou uma mulher, de qualquer forma, a cometer atos ilegais ou imorais" é crime. É justo, portanto, que a comunidade LGBTQ+ se sinta perseguida e esteja a ser uma das mais inconformadas e preocupadas com a realização da competição neste mealheiro do Golfo Pérsico.
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Em entrevista à "Sky Sports", Nasser Al-Khater, presidente do Comité Organizador, assegurou que "todos serão bem-vindos e se sentirão seguros". Também Tamim bin Hamad al-Thani, Emir do Catar, afirmou à Assembleia-Geral das Nações Unidas que o povo catari "abriria portas a todos, sem discriminação", enquanto Gianni Infantino, presidente da FIFA, sublinhou que "todos serão bem-vindos, independentemente da origem, religião, género, orientação sexual ou nacionalidade". Isto, antes de ter enviado uma carta a todas as federações que vão estar presentes no torneio a pedir para "se focarem no futebol e não permitir que o futebol seja arrastado para todas as batalhas ideológicas ou políticas que existem". A mesma FIFA, aliás, tem vindo a ser pressionada a permitir que os capitães usem uma braçadeira com um arco-íris (símbolo da luta LGBTQ+), mas ainda não aceitou.
Apesar das promessas, o ambiente está longe de ser o mais convidativo para homossexuais e várias pessoas já confirmaram que não irão ao Catar por não se sentirem seguras. Mas mais do que o bem-estar dos visitantes, o que muitos enfatizam é o facto de que os homossexuais cataris continuarão a ser discriminados, ostracizados e castigados se as leis e as mentalidades no país não mudarem. A HRW afirma que as autoridades locais "prenderam arbitrariamente lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transgénero e sujeitaram-nos a maus tratos na detenção" entre 2019 e 2022.
Educação e saúde grátis
O Catar tornou-se independente do Reino Unido e um estado soberano apenas em 1971. O desenvolvimento do país começou por ser lento, até se tornar imparável e imponente nas últimas duas décadas. A contrastar com o lado mais discutível, controverso e preocupante, o país também dispõe das infraestruturas mais evoluídas do Mundo, principalmente a capital, Doha, tem edifícios megalómanos e equipados com tecnologia de ponta, cidades multiculturais, com shoppings e restaurantes com comida tradicional de inúmeros países, boas escolas. Para além disso, é um dos poucos países onde ninguém paga impostos, sejam nativos ou estrangeiros que trabalhem e residam lá (a não ser uma contribuição de 5% para a Segurança Social). Já a Educação é gratuita entre os 6 e os 16 anos e todos os residentes têm direito a cuidados de saúde e serviços médicos fornecidos gratuitamente. Notar ainda a particularidade de as escolas não estarem reféns de um programa de ensino comum, tendo liberdade para criar o próprio currículo. Muitas delas são internacionais, com as aulas a serem conduzidas em inglês. O governo criou ainda o "Parque Científico e Tecnológico do Catar" para atrair empresas de base tecnológica e empresários estrangeiros no país e construiu a "Cidade da Educação", que consiste num campus de universidades internacionais.
Por causa da tal "polícia cultural", o Catar cedeu em algumas coisas e, entre 20 de novembro e 18 de dezembro, promete fechar os olhos a outras. Assegura que as restrições em relação ao álcool ou às manifestações públicas, por exemplo, serão menos apertadas, mas, aqui e ali, lá vai alertando que "é preciso respeitar as regras e a cultura", seja lá o que isso signifique na prática. Os custos de se entregar a organização do Mundial 2022 ao país estão à vista, são evidentes e, em alguns casos, trágicos. Por conhecer estão as consequências e, acima de tudo, qual Catar seguirá a vida dele quando a "polícia cultural" dispersar e os holofotes se apagarem. O mesmo de sempre? É o que parece, para mal das mulheres, dos homossexuais e dos trabalhadores.