Ana Amorim era considerada uma das melhores árbitras da Associação de Futebol do Porto. As lesões cortaram-lhe a carreira mais cedo, mas retirou-se no histórico Benfica-Sporting, que estabeleceu um novo recorde de assistência em futebol feminino. Agora, sem a arbitragem, revela que quase vai ter de reaprender a viver.
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As lesões são as piores inimigas de um atleta, seja ele um futebolista ou um árbitro. Neste caso, Ana Amorim teve tudo para se tornar uma figura da arbitragem portuguesa, mas o "fator azar" como lhe chama, impediu-a de seguir em frente. Era considerada uma das melhores árbitras da Associação de Futebol do Porto (AFP) mas múltiplas lesões nos joelhos e dois inícios de enfarte travaram uma carreira promissora com apenas 32 anos. O ponto final foi colocado num jogo histórico que se tornou ainda mais histórico para a própria. No último domingo, Ana Amorim disse adeus aos relvados no Benfica-Sporting, que estabeleceu um novo recorde de assistência em futebol feminino (27 221 adeptos). O futuro vai obrigá-la a aprender a viver sem a arbitragem.
O sonho de se tornar árbitra começou ainda no ensino básico. Ao JN, conta que via futebol com o falecido avô e, como não tinha jeito para jogar, decidiu aos 7 anos ser árbitra. "Tive a oportunidade de tirar o curso de árbitra aos 10 anos no desporto escolar. Aos 15 já fazia tempos dos masculinos e mesmo nos testes escritos estava evidenciada. Por isso, consegui queimar algumas etapas e o Conselho de Arbitragem deu-me confiança. Na altura, estava na AF Aveiro, mas o Carlos Carvalho disse-me que se viesse para o Porto iam apostar em mim em jogos masculinos. E assim foi", começou por dizer Ana Amorim.
Ser árbitra internacional era um objetivo mas, pelo regulamento, só apenas aos 25 anos é que é possível. Foi aí que o azar começou. "A poucos meses de fazer 25 anos tive a minha primeira lesão grave. Rompi o menisco do joelho direito e parei quase um ano. Precipitei-me em voltar para a arbitragem e tive dois inícios de enfarte e voltei a parar. Quando regressei, estava a fazer uma época espetacular e um jogador acertou-me com os pitons no gémeo e estive meio ano a recuperar. Entretanto, em 2019 lesionei-me a 15 minutos do fim de um jogo que me daria a classificação para ser árbitra internacional. Rompi todos os ligamentos do joelho esquerdo, o menisco e ainda fiz uma fratura na tíbia", revelou.
Nos últimos meses, começou a ter muitas dores nos joelhos enquanto arbitrava e recorreu à unidade de saúde e performance da Federação Portuguesa de Futebol. "Disseram-me que perdi 75% da minha cartilagem do joelho. Nunca soube gerir o meu esforço. Se soubesse, poderia ter sido internacional e até ido ao Campeonato do Mundo. Treinava em demasia e fazia sete ou oito jogos por fim de semana em Aveiro. Foi muito desgastante", acrescentou.
Aos 32 anos decidiu terminar a carreira no final da presente temporada. Mas um clássico fê-la repensar no timing da decisão. "Quando vi a nomeação pensei: Estádio da Luz, um Benfica-Sporting, o que poderia querer fazer após isso? Clubismo à parte, é um grande jogo. Só tive de desfrutar e agradecer".
Para além do aspeto físico, a arbitragem traz outras dificuldades. "De jogadores nunca me senti inferiorizada, mas de adeptos já ouvi comentários sexistas. Mas isso acontece sendo homem ou mulher, as pessoas continuam a ir para o futebol para descarregar as suas frustrações. Tudo depende de como nos posicionamos, se damos importância a isso é meio caminho andado para que continue a acontecer", explicou Ana Amorim.
O futebol feminino é não profissional, logo, as árbitras não são remuneradas pelas funções exercidas. Conciliar todas as tarefas que a arbitragem obriga com a vida pessoal e profissional é complicada e Ana Amorim admitiu que teve de abdicar de muitas coisas ao longo dos anos. "Todos os dias acordava às 6 horas e chegava a casa às 22 horas. Tinha de garantir que treinava de manhã para manter a performance física e depois ia para o meu trabalho no setor automóvel. Quando regressava a casa ainda ia fazer testes escritos sobre arbitragem", relata.
Ana Amorim foi a primeira mulher a arbitrar a final da Taça da Associação de Futebol do Porto e sentiu uma "responsabilidade" acrescida. "Se eu falhasse colocava em causa a possibilidade de, no futuro, as minhas colegas arbitrarem um jogo do mesmo calibre. Se corresse mal, não haveria mais a seguir".
Ana Amorim revelou que Carlos Carvalho, presidente do Conselho de Arbitragem da AF Porto, foi uma figura importante para a sua vida profissional e para o desenvolvimento da arbitragem em Portugal, elogiando o percurso na Federação Portuguesa de Futebol. "Foi fazer um estágio na FPF e ensinar o que é o dirigismo. Foi a primeira pessoa a apostar no futebol feminino em Portugal. É um exemplo do desenvolvimento da arbitragem no futebol feminino nas distritais", disse.
Com o fim de carreira precoce, Ana Amorim admite que sai de cena com um "sabor amargo na boca" pelos problemas físicos. Agora, vai ter de reaprender a viver sem a arbitragem.
"Tenho muito orgulho na minha carreira, não cheguei ao nível internacional por falta de competência mas sim pelas lesões. Dói acabar desta forma, agora vou ter de reaprender a viver sem a arbitragem. Não tenho outra realidade há 20 anos, não sei o que é viver sem futebol. Chega sábado e domingo e eu não tenho jogo, o que vou fazer? Ainda não sei", rematou.