Entre cortes nos salários propostos pelos clubes e abandonos por parte de patrocinadores, várias foram as atletas grávidas que sofreram discriminação.
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O desporto era um mundo marcadamente masculino, mas as mulheres têm desbravado caminho e provado que o setor não pertence a um só género. As lutas têm sido muitas, as conquistas outras tantas, mas ainda há muitas barreiras a ultrapassar rumo à igualdade e ao fim do preconceito. Uma delas é o direito a ser mãe sem precisar de terminar a carreira ou sofrer qualquer tipo de discriminação por ser obrigada a parar.
O primeiro passo foi dado pela FIFA e tem vindo a melhorar. Em janeiro de 2021, o organismo que rege o futebol mundial aprovou uma regulamentação para permitir às futebolistas um gozo de pelo menos 14 semanas de licença de maternidade, remuneradas a dois terços do salário base. Antes, como era o caso de Espanha, e não só, havia contratos com cláusulas anti gravidez, que davam o direito ao clube de rescindir contrato quando a atleta engravidasse. Hoje, quem o fizer é obrigado a pagar multa e corre o risco de ficar proibido de contratar futebolistas durante um ano. Em janeiro do ano passado, em Inglaterra, as jogadoras passaram a usufruir dos privilégios dados à maioria da população feminina do Reino Unido, em caso de maternidade e de doença prolongada. Até à aprovação desta nova regulamentação, as jogadoras tinham de estar vinculadas a um clube durante 26 semanas para serem elegíveis ao apoio à maternidade, período que deixou de existir.
Em Portugal, o Governo trabalha numa alteração legislativa, que quer ver aprovada para produzir efeitos em 2024, para todas as modalidades, que pretende garantir a remuneração das atletas de alto rendimento desportivo durante a gravidez e durante os 120 dias de licença de parentalidade. Está, ainda, sabe o JN, a ponderar-se uma subvenção financeira a 100%, a pagar pelo IPDJ (Instituto Português do Desporto e Juventude), após o término dos 120 dias de licença de parentalidade, durante um período razoável para a recuperação da aptidão física da atleta, necessária para o alto rendimento.
Um passo para um caminho já demasiado discriminatório e com muitos nomes de atletas que sofreram na pele represálias por terem decidido engravidar. Desde perda de patrocínios a reduções salariais Agora, é altura de lutar contra o estigma de quem acha que gerar uma vida é sinónimo do fim de uma carreira profissional, quando mais não é do que um direito.
Patrícia Gouveia
"Ia passar a auferir um quinto do meu ordenado"
Ex-jogadora do Sporting foi obrigada a recorrer ao Sindicato dos Jogadores
Patrícia Gouveia era capitã do Sporting e jogadora da seleção nacional de futebol - até ajudou no apuramento histórico da equipa das quinas para o Euro 2017 - quando, em 2016, descobriu que estava grávida. "Foi uma gravidez muito desejada, mas não planeada", conta, ao JN. Ser mãe sempre foi um desejo mas, numa altura em que a carreira estava no auge, com cinco títulos nacionais, a notícia foi um misto de emoções. E, por isso, precisou de tempo para a digerir e partilhá-la com o clube.
"Foi uma grande felicidade mas, depois, sabia que tinha de colocar os meus objetivos em suspenso. Decidi que estava na altura de contar ao clube quando, durante um jogo, marcaram um livre perigoso contra nós e eu não quis ir para a barreira, como era habitual, com medo de pôr em perigo a vida da bebé. Contei primeiro à direção técnica e ao treinador, depois às minhas companheiras. Foi uma conversa muito emotiva e ficaram todos muito contentes por mim".O problema veio mais tarde. Semanas depois de dar a notícia, a antiga centro-campista foi chamada pela direção técnica e não escondeu a surpresa quando lhe apresentaram um novo contrato. "Revogava o vínculo anterior, que tinha duração de mais dois anos. O novo durava meio ano e ia passar a auferir um quinto do meu ordenado. Recusei e disse que não assinava, que devia ser um engano. Acionei os mecanismos e falei com o Sindicato dos Jogadores, que logo me disponibilizou suporte legal. Depois de várias reuniões, o Sporting percebeu que não era esse o caminho. Mantive o contrato como estava e a nossa ligação continuou", recorda Patrícia, que depois de terminar a carreira nos relvados ainda foi team manager da equipa feminina dos leões.
FUTEBOL
Patrícia Gouveia
Idade: 35 anos
Clube: Ex-Sporting
Jéssica Augusto
"Perdi o apoio monetário de uma marca"
Atleta do Braga garante que patrocínio cortou rendimento a várias atletas profissionais
Jéssica Augusto sempre quis ser mãe e, em 2014, decidiu que seria a altura certa. Falou com o treinador para fazer o planeamento da época e ficou decidido que, no final da temporada, ia tentar engravidar para que depois houvesse possibilidade e tempo de preparar os Jogos Olímpicos de 2016. "Não foi uma decisão fácil, estava numa fase muito boa da minha carreira. Mas era algo que queria muito e não podia adiar mais. Porque quanto mais tarde engravidasse, menor era a probabilidade de ter uma gravidez sem problemas", partilha, ao JN.
Mal soube que esperava um bebé, Jéssica foi transparente com a Federação Portuguesa de Atletismo e o Comité Olímpico de Portugal, de quem recebia uma verba. "A novidade foi bem aceite e continuaram a apoiar-me". Mas o mesmo não se pôde dizer de um patrocínio. "Perdi o apoio monetário de uma marca desportiva desde o momento em que engravidei. Não perdi o patrocínio mas, como recebia, eles cortaram logo. Acho que estava no contrato, porque já tinha acontecido o mesmo a outras atletas. Independentemente do que acontecesse quando engravidasse, eu ia aceitar, foi uma decisão minha. Mas claro, foi muito injusto", conta a atleta que representa o Braga.
Jéssica decidiu parar até à altura do parto mas sempre com uma ideia em mente: voltar aos treinos e lutar por metas. "Quis aproveitar a gravidez, viajei. Quando a Leonor nasceu, tive um prazo de três meses para me adaptar, voltar a fazer exercício físico e treinar para os meus objetivos. Foi tudo com muita naturalidade. Senti a pressão que meti em mim, acreditava que ia chegar ao meu objetivo, porque tinha tudo bem planeado. Só não queria era falhar", conclui.
ATLETISMO
Jéssica Augusto
Idade: 41 anos
Clube: Braga
Marta Onofre
"Fiquei com menos 40% do que recebia"
Apressou o regresso à competição mas salário que aufere é inferior
Uma gravidez obriga a um tempo de paragem e Marta Onofre não esconde que o medo da pausa lhe passou pela cabeça quando decidiu aumentar a família. Ainda assim, graças a uma gestação tranquila, conseguiu treinar até às 34 semanas, em sessões adaptadas à condição da atleta na especialidade do salto com vara. Ao todo, esteve apenas oito semanas parada: quatro antes do parto e outras tantas depois do nascimento do bebé. Só parou quando a obstetra a aconselhou a não continuar.
"Acabei por apressar o meu retorno à prática de exercício, mas sempre acompanhada por profissionais. Tive o meu filho em maio de 2022 e, pouco depois, sagrei-me campeã nacional", partilha, ao JN. Marta admite que teve medo que o Sporting quisesse deixar de lhe pagar o salário quando contasse da gravidez: "Nunca o fez. O meu contrato terminava no final da época de 2022, estava salvaguardada". Mas depois do pequeno Bernardo nascer, um novo vínculo foi-lhe apresentado com alteração significativa salarial.
"Quando chegou a altura de renegociar o meu contrato, a proposta inicial foi de um corte de 60% do meu ordenado. Acho que o clube não estava à espera que conseguisse chegar tão depressa à minha forma anterior. Houve negociações e fiquei com menos 40% do que recebia. Agora, o meu objetivo é acabar de voltar à minha forma física na altura do verão e conseguir chegar às minhas marcas anteriores. Espero poder renegociar com eles e chegar ao valor semelhante que auferia anteriormente", sublinha. Contactado pelo JN, o Sporting explica que a diminuição no ordenado nada tem a ver com o facto de Marta Onofre ter sido mãe e esclarece ainda que é normal haver reduções salariais nos contratos quando se está numa fase mais adiantada da carreira.
SALTO À VARA
Marta Onofre
Idade: 32 anos
Clube: Sporting
Vanessa Pereira
"Tinha receio que não me quisessem mais"
Triatleta teve bastante medo de contar ao clube que estava grávida
Quando chegou aos 30 anos, Vanessa Pereira não quis adiar mais e decidiu ser mãe, apesar de todos os receios e paragens que a gestação podia implicar. "Quanto mais tempo eu esperasse, maior seria a probabilidade de complicações. E esperar que houvesse apoio para as mães atletas em Portugal estava fora de questão, bem que podia esperar. Mas, felizmente, as coisas já estão a mudar", vinca a atleta do triatlo, ao JN.
Na hora de partilhar a boa nova ao Estoril, clube que ainda hoje representa, os receios eram muitos. "Estava com medo de contar. Tinha receio que não me quisessem mais. Tanto que quando contei, lembro-me de dizer, logo a seguir, que poucos meses depois já podia competir. Mas o Estoril aceitou a notícia com muita alegria".
Ainda assim, Vanessa sofreu uma represália. "Uma das marcas deixou de me apoiar depois de ter sido mãe. Na altura, engravidei no final da época e não me renovaram o contrato. Não disseram com palavras claras que era por estar grávida, mas obviamente que foi. Senti tristeza e raiva, sentimo-nos desmotivadas. Porque em vez de termos apoio por sermos mães e atletas, cortam-nos esse apoio", lamenta.
Para a triatleta, está na hora de mudar mentalidades. Não só no mundo desportivo, como da sociedade em geral. "As pessoas pensam que por ser mãe, a vida de atleta acaba. Se a sociedade pensa isso, obviamente que as marcas também o vão fazer. Depois de ser mãe, muitas atletas falaram comigo e partilharam os medos".
Quanto ao tempo de paragem foi curto: "Um mês depois já estava a trabalhar. Se calhar devia ter aproveitado mais, mas impus pressão em mim por querer ajudar e voltar a ter resultados".
TRIATLO
Vanessa Pereira
Idade: 34 anos
Clube: Estoril