A pirâmide foi virada ao contrário. A história do futebol fez-se de baixo para cima, com grupos de amigos a criarem clubes que, por sua vez, se juntaram em associações para competir e, aos poucos, criaram legiões de adeptos que transformaram o desporto no negócio multimilionário que conhecemos. A fórmula vencedora chegou do Século XX ao XXI, mas, agora, vê-se confrontada com um novo modelo de negócio que, apesar de ainda não fazer soar os alarmes dos mais poderosos, mostrou que a fama tem impacto imediato. Eis Kings League, a liga do "rei" Gerard Piqué.
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O antigo defesa do Barcelona e da seleção espanhola sempre teve dedo para o negócio e durante um jantar com Ibai Llanos - um espanhol eleito, por duas vezes, o maior "streamer" do Mundo -, decidiu criar a "Kings League". Resumidamente trata-se de um torneio de futebol de 7, mas com regras muito específicas, escolhidas e votadas "online".
A ideia-base é mostrar tudo aquilo que é segredo no futebol convencional. As palestras dos treinadores são transmitidas, bem como as negociações nas transferências, os árbitros têm câmara ao peito e é possível ver e, sobretudo, ouvir tudo o que se passa em campo. Os jogos são transmitidos no Twitch ou YouTube e o primeiro torneio de inverno teve números impressionantes: se a fase do campeonato foi disputada num simples pavilhão no porto da cidade-condal, a final levou mais de 92 mil adeptos a Camp Nou (bilhetes entre os 10 e os 60 euros!) e foi vista, na internet, por mais de dois milhões de pessoas.
Pagar por estrelas
Cada clube tem um presidente e, também aqui, a fama é o segredo do negócio, sendo que Iker Casillas lidera o 1K e Kun Aguero o "Kunisports". A liga paga os ordenados dos jogadores normais, os presidentes pagam aos treinadores e aos jogadores "wild card", que podem ser ex-profissionais - Saviola e Ronaldinho, por exemplo, já jogaram -, e contratar um 13.º jogador custa 600 mil euros. A Kings League volta no verão e já se fala da edição brasileira, liderada por Neymar.
As regras da Kings League
1. Não há empates: À maneira "americana" não há empates na Kings League. Em caso de igualdade no tempo regulamentar, as equipas disputam uma desempate por penáltis, também ele com características especiais (ver ponto 6).
2. Mexidas sem limite: Tal como no futsal, os treinadores podem fazer substituições ilimitadas, sendo que o jogo não tem de parar. Cabe ao árbitro auxiliar confirmar se tudo decorre dentro do que está previsto nos regulamentos.
3. Cinco cartas de ouro: Cada um dos treinadores tira uma das cinco cartas de "vantagem": golo vale a dobrar durante dois minutos; expulsar um adversário por dois minutos; penálti a favor; roubar a carta ao rival; "joker" permite escolher a vantagem.
4. Amarelo dita saída: Um jogador que veja um cartão amarelo fica dois minutos de fora. Um vermelho vale exclusão por cinco minutos e o atleta expulso não pode voltar a ser utilizado: ao fim dos tais cinco minutos, pode ser substituído.
5. VAR à condição: Os jogos têm videoárbitro, mas não no formato do futebol. Cada equipa tem uma oportunidade para pedir que um lance seja analisado: se tiverem razão mantém a vantagem, caso contrário não podem voltar a pedir VAR.
6. Penáltis caricatos: Em caso de empate, os jogos são decididos por penáltis em movimento. O avançado arranca com a bola do meio-campo e tem cinco segundos para executar: remate ou finta. Se o guarda-redes tocar na bola, é penálti falhado.
7. Início à pólo aquático: O pontapé de saída é diferente. A bola é colocada no centro do terreno e, ao primeiro apito do árbitro, os jogadores arrancam a correr a partir da linha de fundo para tentar conquistar a posse, o que provoca muitos contactos.
8. Quatro árbitros: Cada encontro tem quatro árbitros: um juiz principal, que está dentro de campo, um responsável pela videoarbitragem e dois auxiliares que têm como principais funções controlar as substituições das equipas.
9. Cartões e multas: Tal como no futebol tradicional, cada cartão tem uma multa correspondente: um amarelo custa 150 euros ao jogador, um duplo amarelo é punido com 350 euros e um jogo de suspensão. Um vermelho direto custa 800 euros.
10. Duração 40 minutos: Cada encontro tem a duração de 40 minutos, com duas partes de 20 minutos. O intervalo dura, apenas, três minutos, sendo que uma das "regras" é a luta contra o antijogo: o árbitro pode e deve castigar estas situações.
Daniel Sá, diretor-executivo do IPAM: "É um primeiro aviso, muito sério, ao futebol conservador"
Como especialista de marketing como analisa o sucesso desta primeira edição da Kings League?
É um primeiro aviso, muito sério, à industria conservadora do futebol. Primeiro porque os 90 minutos são, tipicamente, demasiado aborrecidos. O normal, com exceções claro, é ter poucos picos de emoção. Segundo, e tão importante como os números que a Kings League conseguiu, é ver o perfil de quem seguiu a competição. Quem vê é a geração mais nova que, daqui a 10 anos, vai pagar pelas coisas. Eles não têm paciência para 90 minutos e juntar o futebol aos videojogos funcionou muito bem.
Mas pode, de facto, ter impacto imediato no futebol tradicional?
Se me pergunta se isto vai revolucionar o futebol todo, acho que não. Mas estes números, online e presenciais, poderão ter uma interferência grande nos direitos de transmissão televisiva. Além disso, as marcas que querem patrocinar e estar perto da nova geração, escolhem esta plataforma. Não vai ficar por Espanha, vão-se experimentar outros modelos e, se isto continuar a crescer, o futebol vai ter de se mexer nesta direção.
Seria possível este sucesso sem a presença de nomes famosos, como Piqué ou Ronaldinho?
Essa é a chave. Impossível não seria, mas ter este sucesso com esta rapidez, só se explica com o Piqué, um futebolista e empresário na área de desporto, combinado com um naipe de influenciadores, que chegam a muita gente em pouco tempo.
O mercado português tem dimensão para receber um projeto destes?
Sem dúvida. Somos quatro vezes mais pequenos do que a Espanha, mas no resto somos iguais. Se funcionou lá, também funcionaria cá. Se em Espanha foram dois milhões a seguir online, em Portugal poderíamos chegar aos 500 mil. Basta pensar quantos jogos "normais" chegam a esses números para se ter uma noção do impacto que isso teria em Portugal.