Álvaro Leite correu a maratona de Pyongyang, na Coreia do Norte. Terá sido um dos 20 melhores atletas estrangeiros. Mas não teve acesso à classificação. Só a um diploma de participação.
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A curiosidade de ver e sentir o país mais fechado do mundo, alimentada pelo livro Dentro do Segredo, de José Luís Peixoto, a paixão por viajar, e a vontade de correr no maior número de países foram os motores da decisão. O comissário de bordo portuense Álvaro Leite, 45 anos e federado em triatlo, participou na 28.ª maratona de Pyongyang, na Coreia do Norte, no domingo 9 de abril. Jamais esquecerá a experiência, mesmo sem saber em que lugar cortou a meta no 99º país da sua lista de corrida.
Álvaro encontrou um povo tímido mas afetuoso, numa capital com ruas limpas, sem lojas, nem cafés, nem buzinas, nem publicidade - ou melhor, só propaganda do regime. Por todo o lado. Passou três dias sem internet, telemóvel, televisão, sem saber o que se passava no mundo. Sempre com guias locais por perto, tinha de pedir autorização para fotografar, foi revistado antes de entrar no país e interrogado à saída. "É um país que parou no tempo, estradas de terra, bicicletas como meio de transporte - aliás, só os militares e as autoridades podem ter carro e conduzir - e um sistema feudal na agricultura".
A barreira da língua e as regras apertadas dos guias, que não davam autonomia aos atletas estrangeiros, dificultaram o convívio. "Fico com a ideia de que o povo é feliz à sua maneira, tem de cumprir imensas regras, mas, por outro lado, não tem problemas de violência das sociedades ocidentais. As pessoas passam por nós e quase não as sentimos. Um silêncio constrangedor para quem está habituado ao ruído das nossas ruas. A cidade é um museu vivo em que tudo parece ensaiado e representado".
Álvaro preparou-se durante cinco meses para a maratona, que tinha um tempo estipulado de quatro horas. Nem mais, nem menos. Depois disso, os portões do estádio de Pyongyang fecharam-se e muitos atletas tiveram de desistir. Passou por eles às 3:23 de prova (o primeiro fez 2:15) e não sabe se os três portugueses que encontrou ente os 1200 inscritos conseguiram. Porque não há, para já, classificação para amadores. Só os profissionais tiveram direito à lista. "Não fornecem dados, é tudo muito vago, diferente de todas as outras provas que corri anteriormente. Fica tudo em segredo, dizem que é para nos proteger". Deram-lhe um certificado de participação numa prova sem escalões de idade, sem quaisquer divisões.
Álvaro terá ficado no top 20 dos 400 estrangeiros, mas não no top 10, porque a falta de comida com hidratos de carbono - emagreceu três quilos - prejudicou-lhe o plano. "O pior foi a ausência de abastecimentos, só davam água e em muitos sítios já nem havia". Mas o que guarda na cabeça é a receção no estádio, com 80 mil pessoas de pé a aplaudir. "Não tenho palavras para descrever a grandiosidade do momento. Fizeram-nos sentir como verdadeiras estrelas".
A aventura do português começou antes de entrar na Coreia do Norte. Após dois dias em Seul, na Coreia do Sul, viajou até Dandong, no nordeste da China, fronteira com a Coreia do Norte. Aí encontrou outros atletas estrangeiros e os organizadores da sua viagem. Depois de atravessar a ponte que separa os dois países, passou uma hora na verificação de vistos e passaportes e de todo o material fotográfico, telemóveis, livros. "Não se pode entrar na Coreia do Norte com livros que possam perturbar a doutrina do regime, ou seja, livros políticos, económicos ou sociais. Também é proibido utilizar lentes fotográficas superiores a 150 mm".
Duas horas depois o grupo foi levado para a estação de comboios. Após sete horas de viagem numa composição antiga, mas confortável, Álvaro pisava Pyongyang. "A paisagem fora da grande cidade é de campos, em que todas as pessoas fazem o trabalho de forma manual, sem qualquer tipo de ajuda. Parecia o Portugal dos filmes dos anos 70". Os guias estavam à espera, dos altifalantes saíam discursos, "eventualmente seriam os hinos do regime". O hotel era confortável e muito bom, mas sem wi-fi. Fora dele, os passeios eram controlados. Sentiu-se "sem qualquer autonomia, completamente enclausurado". No regresso outro filme: duas horas de interrogatório e de verificação de material. "Nada existe fora do regime, aliás, a população não pode comprar casa, tudo é controlado pelo Governo. Ficam os afetos e as emoções de um povo que, apesar de oprimido, parece feliz".
O atleta que nunca desiste
Como atleta, já correu na muralha da China, no alto de Machu Picchu, no deserto de Atacama, nos Himalaias, no Polo Norte, em Israel. Participou em dois ironman, modalidade de triatlo de longas distâncias, com 3800 metros a nadar, 180 quilómetros de bicicleta e 42 km a correr, na Austrália e na Alemanha. O seu recorde na maratona é de 3:14. Os seus melhores tempos estão registados: 10 km em 34 minutos, 21 km em 1:23, o ironman em 11:20.
Até hoje, nunca desistiu de uma prova. E ainda tem sonhos para concretizar: correr na Antártida, completar provas em todos os continentes, participar num terceiro ironman na Nova Zelândia, fazer um trekking até ao campo de base do Evereste e entrar na Norseman, um desafio sob temperaturas negativas na Noruega.