Uma hora antes do treino, ao início da noite no polo leonino do Estádio Universitário de Lisboa, o termómetro nem chegava aos dez graus quando o JN se encontrou com Mariana Cabral, jornalista (do "Expresso") e coordenadora do futebol feminino do Sporting.
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Depois de um início de conversa a discutir o papel da mulher no futebol e na sociedade, e as dificuldades que isso acarreta para aquela que foi a primeira portuguesa a votar na Bola de Ouro feminina (ganha pela norueguesa Ada Hegerberg), a treinadora das bês e juniores leoninas assumiu a ambição natural de orientar uma equipa principal, em Alvalade ou longe.
Mas, por enquanto, sente-se confortável com as jovens leoas, um projeto que bate recordes e ainda está longe do fim. Já a transição Bruno de Carvalho-Frederico Varandas, na presidência do clube, mal afetou a formação feminina.
A Bola de Ouro foi o mote para esta conversa. Qual foi a sensação de fazer parte da primeira edição?
Foi uma sensação de orgulho. Não tanto por mim, mas por todas as mulheres que já lutaram pelo futebol feminino. É um momento marcante, a primeira Bola de Ouro. Não sei quantas décadas depois da primeira bola masculina. Portanto, é um momento muito bonito.
Como é que chegou o convite para integrar o painel de votantes?
Penso que falaram com a Federação e o Luís Sobral [n.d.r. Diretor de Pessoas e Media] indicou o meu nome. Depois, quando chegaram a mim, porque como eu também tenho a vertente de ser jornalista e normalmente são os jornalistas a votar, juntou-se o útil ao agradável.
Jornalista de desporto, ex-jogadora, agora treinadora. Dois mundos de homens. Como é ser mulher nesses mundos?
É difícil. Estando num mundo de homens, há sempre algum preconceito.
Há mais a provar, como jornalista e treinadora?
Sim, sim. Nas conferências de imprensa, se fizer uma pergunta sobre o jogo ou tática, as pessoas ficam admiradas, como se fosse algo difícil. É normal. Ou uma vez, em Barcelona, fomos a um torneio e o rapaz da organização veio para ao pé de nós e estava eu e os meus dois adjuntos, o Rodrigo Morais e o Tomás Gama. Ele perguntou a um se era o treinador, depois virou-se para o outro. Olharam os dois para mim e disseram: "É ela". E ele ficou admirado, como se fosse uma coisa do outro mundo. "Pensava que era a enfermeira"... Não é um cargo habitual para mulheres, mas a partir do momento em que houver mais, começa a ser normal.
E em relação à homossexualidade. Os homens têm muito medo de assumir as preferências sexuais, por serem discriminados pelos colegas. As mulheres fazem o mesmo?
Num ambiente de formação são muito novas. Mas quando eu jogava, havia jogadoras que o eram e era uma coisa normal, falada no balneário.
O preconceito fica à porta?
Não há tanto aquela coisa do machismo. Mas há o preconceito inverso. Quem está fora depois diz: essas gajas que estão no futebol feminino são todas umas fufas. Enquanto que no futebol masculino simplesmente não existem homossexuais e são todos machos.
Nenhuma condicionante impediu a mudança para o banco de suplentes. Onde apareceu o interesse pelo treino?
Quem está nisto só pode estar por paixão. E continua por isso. Quando jogava conheci uma treinadora, a Helena Costa, que me fez perceber o que era mesmo o jogo. Comecei a interessar-me pelo treino, a treinar, e apercebi-me que gostava de treinar.
Os primeiros passos foram dados onde?
O primeiro estágio foi nos sub-18 femininos do 1.º Dezembro enquanto jogava. Percebi que jogar e treinar não ia dar. Depois, a Helena ajudou-me. Ela estava no Benfica e fui lá fazer um estágio com os benjamins e a equipa feminina. Depois passei para os benjamins e iniciados do Benfica, numa escola em Odivelas.
Como é que surgiu o Sporting?
Este é o terceiro ano. Estava a treinar os juvenis femininos do Estoril-Praia. E estava lá a Raquel Sampaio. Foi ela que organizou o futebol feminino no Sporting. Apresentou o projeto e convidou-me para vir para cá.
Surpreendeu a saída da Raquel Sampaio, num projeto estabilizado e vencedor?
Sim, surpreendeu-me. Obviamente, como disse, foi a pessoa que montou a estrutura. Claro que me surpreendeu. Mas quem terá tomado essa decisão, há de saber porquê. Não sou eu que saberei justificar a saída.
Mesmo assim, as leoas juniores e as bês continuam a vencer e a bater recordes.
Batemos um no outro dia em juniores. Ficou 26-0.
Como se explica?
Não é coisa que nos deixe propriamente contentes. Claro que as miúdas gostam de marcar golos e nós ficamos felizes, porque pretendemos que encarem todos os jogos da mesma maneira. Mas temos algumas dificuldade nesses jogos, porque as pessoas não compreendem e dizem que não temos humildade. Mas é ao contrário.
Também é um sinal de falta de competitividade...
Exatamente. Nós não vamos para um jogo ter pena do adversário. Vamos jogar sempre da mesma maneira. E estes resultados demonstram que falta competitividade e alguma reflexão nos quadros competitivos.
Ainda assim, os bons resultados valorizam o trabalho feito. Já foi abordada para renovar?
Tenho contrato até 2019/20. Não faço ideia. Este é o terceiro ano. Normalmente, o contrato é de dois anos e ao fim de um ano volta a ser renovado. No fim desta época, não sei se vão renovar.
Mas o desejo é prosseguir?
Quero ter todo o sucesso possível com o Sporting. Se as pessoas entenderem que tenho perfil para continuar e valorizarem o meu trabalho, e se eu entender que temos condições para continuar, continuaremos. Se não, amigos como dantes.
Dar o passo para a equipa principal é ambição a ter em conta?
Vejo-me a treinar uma equipa principal sénior de futebol feminino. Treinar equipa sénior é um passo que gostava de dar.
E treinar a equipa do Sporting?
Se as pessoas entenderem que eu tenho perfil, gostava. Claro. É um desafio muito grande. É muito diferente estar na formação e trabalhar com seniores.
Podia ser uma hipótese dar o salto para uma equipa masculina?
Não tenho muito interesse. No futebol feminino há muitas pessoas que não nos encaram com tanta competência só por sermos mulheres ou mais novas. E olham para o homem com mais respeito. Se isso existe no futebol feminino, no masculino nem se fala. Não tem a ver com o jogo ou conhecimento do jogo, isso é tudo igual.
É uma barreira muito difícil de superar?
Sim, é tudo o que está à volta do jogo. No futebol feminino ainda não há muita gente à volta, não há tanto mediatismo, tanta crítica em cima do trabalho e das derrotas. No masculino é diferente. Mas eu quero ver é o futebol feminino crescer. Sinto-me como uma pequenina peça da engrenagem, que está aqui a ajudar ao crescimento. Isso faz-me feliz.
Ainda no futebol masculino, o Sporting mudou de treinador. Que opinião tens de Marcel Keizer?
Adoro. Especialmente tendo em conta o contraste, como o Sporting jogava antes e como joga agora. Acho ótimo para as pessoas perceberem aquilo que é a influência de um treinador na equipa. Desde que tenha as ideias e os caminhos, conseguimos sempre implementar. É o exemplo perfeito. É a mesma equipa. Nem sequer houve janela de transferências.
A outra mudança em Alvalade foi na presidência. Como sentiu a transição?
Nós, aqui na base, digamos assim, na formação, não sentimos muita diferença. Se calhar a maior diferença foi no dia a dia. Porque temos uma maior proximidade. Há um novo diretor do futebol feminino, um novo diretor da Academia, que tem o pelouro do futebol feminino. É uma pessoa que trabalhava connosco aqui no Estádio Universitário [n.d.r. Paulo Gomes], que conhecemos bem. Por isso há uma maior proximidade.
Data de nascimento: 27 de agosto de 1987 (31 anos)
Nacionalidade: Portuguesa
Profissão: Coordenadora da formação do futebol feminino do Sporting e jornalista