Apuramento inédito para o Mundial (que está prestes a arrancar, na Nova Zelândia) é o corolário de uma aposta forte e incontestável no futebol feminino. Uma viagem à travessia sinuosa que permitiu chegar até aqui. E ao rol de dificuldades que ainda há para desbravar.
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Houve ali um momento, naquela alvorada alucinante de fevereiro, em plena Nova Zelândia, em que a eternidade ameaçou fugir. Era o minuto 89 do derradeiro play-off de apuramento para o Campeonato do Mundo de futebol feminino, a seleção portuguesa vencia por 1-0 desde cedo, as navegadoras pareciam destinadas a agarrar a História. Mas depois veio aquele minuto demoníaco, o erro no meio-campo defensivo, o passe que descobriu Ajara Nchout, avançada dos Camarões, solta na área, ela a rodopiar com tempo, como um golpe que se anuncia em câmara lenta, a rematar cruzado para golo. E elas, as atletas camaronesas, a exultar, a correria desenfreada de quem voltava a acreditar, as portuguesas sem esconder o desânimo, a sombra de um prolongamento aflitivo a pairar. Só que o desalento durou menos de nada, pouco depois de o jogo ser reatado já Andreia Jacinto via o remate a ser travado com a mão, dentro da área, já o caso seguia para o VAR, já o penálti mais importante da história da seleção feminina portuguesa estava confirmado. Íamos nos 90+5, Carole Costa não vacilou, foi linda a festa no Waikato Stadium. E às tantas aquele júbilo já não era só delas, era de todos nós, era ainda mais de tantas outras que durante décadas se entregaram ao futebol a troco de nada, das que treinaram a horas impróprias porque ficavam sempre para último, das que ainda imberbes se batiam contra as que tinham o dobro, e às vezes o triplo, da idade - porque não havia escalões -, das que foram vítimas do estigma castrador, das que não só não recebiam um tostão, como ainda pagavam para jogar. Das que partiram pedra. Lá iremos. Voltemos, por agora, àquele 22 de fevereiro, o dia em que se cumpriu o desígnio há muito gizado pela direção liderada por Fernando Gomes.
“[O apuramento para um Mundial] foi um objetivo claro do nosso presidente e desta direção. Sabíamos que era um desafio difícil e que podia não chegar, mas acreditávamos. E de facto foi a cereja no topo do bolo. Era o que nos faltava e o que faltava à nossa cultura desportiva”, reconhece Mónica Jorge, ela que está mergulhada nesta história da cabeça aos pés. Hoje é diretora para o futebol feminino e membro da direção executiva da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), mas já lá estava em 2000, na altura como treinadora estagiária. E voltamos à tal realidade confrangedora que hoje parece tão longínqua, mas que, vendo bem, não está assim tão distante no tempo. “Havia uma única seleção, que era a seleção A, com idades muito diferentes. E havia muito poucas jogadoras, o campeonato nacional era disputado por seis equipas a quatro voltas, o que se tornava muito desmotivante, muitas equipas só treinavam duas vezes por semana, jogavam em pelados, havia uns quantos casos de treinadores que mudavam de equipa e levavam as jogadoras todas atrás, era tudo muito amador, não tinha nada a ver com o que é hoje.”