Atletas de 22 países juntaram-se antes da Páscoa no Peneda-Gerês Trail Adventure, um convívio intimista de 220 km de corrida de montanha, sete dias, cinco concelhos: o futuro para os municípios do Parque Nacional Peneda-Gerês. E para quem resiste neles.
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"Oh, abre aos pouquinhos", diz Amélia da sua "Tasquinha" no coração do Sistelo. Porque Amélia tem 15 ovelhas para amanhar e o Sistelo tem, nos cinco povoados que o constituem, 270 almas. Uma mão cheia de quase nada na tragédia do despovoamento.
Abre aos pouquinhos quando, lá fora, se juntam loucos vestidos de licras coloridas ou kilt - já lá vamos - e calçados com sapatilhas a modos dos tamancos que Amélia leva quando vai com as ovelhas. Está aberta, agora, cedinho.
Sérgio Rodrigues beberica o café ao balcão. É presidente da junta, veio ver a partida de uma das etapas - foram sete - do Peneda-Gerês Trail Adventure (PGTA), porque aquilo, diz, enrolando o pacotinho de açúcar, é o futuro. Aquilo e a ciclovia que já liga o "Vietname português" à sede do concelho de Arcos de Valdevez. Gente que ama a natureza e ri enquanto se deixa ser destruído por ela.
Falam-se 22 línguas na partida. Português também, mas com sotaque, daquele que teima em permanecer na génese daqueles que são filhos dos outros, os idos de Portugal, muitos deste Alto Minho esvaziado. A corrida de montanha idealizada pelo ultramaratonista Carlos Sá quer mesmo isso: trazer o mundo ao Parque Nacional Peneda-Gerês e levar o Parque Nacional Peneda-Gerês ao mundo.
Ao cabo de quatro edições, a aposta está ganha. Só do Brasil vierem 60 corredores. Uma delas, Cláudia, ganhou os 220 km corridos em sete dias, cinco concelhos e duas regiões.
Dos Países Baixos chegaram uns 20. Mas são os outros, isolados, que constroem o charme do evento. Tiffany e Peh San vieram de Singapura. Há japoneses e neozelandeses. Ashur é da Costa Rica.
Christian até vive em Braga, há um ano. Mas, pasme-se, nasceu e viveu na Gronelândia. Tem calor, tanto que uma espanhola que fez a versão de quatro dias lhe ofereceu um lenço com esponjas incorporadas. Não o largou mais, por muito que não condissesse com o kilt. Sim, é ele, o homem de saia e sandália. Tem o pé incólume, ao contrário dos das sapatilhas. A saia, ri-se, é só agradável. E afasta o sol.
Isto é o futuro
Amélia nem repara. É assim todos os fins de semana. Ainda no último eram uns 200 a querer sorver os socalcos traçados pelo milho nas encostas do Sistelo. "Temos duas hipóteses, ou deixamos continuar as coisas como estão e daqui por uma década não temos cá ninguém, ou tentamos fazer alguma coisa para o futuro", expõe Sérgio, já de café tomado. E o desporto de natureza pode ser o segredo.
Manoel Batista acredita piamente nisso e não falha a meta desse dia, na praça do município de Melgaço. O autarca promete um concelho todo trilhado muito em breve. "Temos que aproveitar a imagem do parque e da reserva da biosfera para trazer cada vez mais gente ao nosso território. Com isso criamos economia". Foi essa ideia que convenceu os municípios do Parque (Arcos de Valdevez, Ponte da Barca, Melgaço, Terras de Bouro e Montalegre), o Programa Operacional Regional do Norte (Norte 2020) e o Turismo do Porto e Norte de Portugal a apoiar a Carlos Sá Nature Events neste projeto.
"Isto não tem descrição. Uma senhora disse-me "Eu se tivesse a vossa idade também fazia isso"!" Amândio é dos poucos portugueses de Portugal e fez-se notar. Ganhou. Com a simplicidade de quem está ali sem o aparato das estrelas - o PGTA é isto, no fundo, uma sucessão de alvoradas longe do brilho do estrelato, uma reunião intimista de onde saem amizades, onde ninguém parece preocupar-se com os resultados.
Gérson terá ganho mais do que Amândio: os banhos nas cachoeiras, a ligação ao céu, a elevação do espírito, que é o que ele persegue. Bebeu água da tigela de louça banca com flor da Maria do Júlio das concertinas de Cunhas, no Soajo, por cima da grade do jardim dos "The Araújos". Maria é assim, não há ano em que não apareça ao portão a oferecer oxigénio, enquanto soa uma concertina na mesa do quintal, "Meteu-se-lhe isso em cabeça desde que cá estamos", conta ela, sotaque de uma vida no Canadá ainda percetível, lá no fundo. Parece que uma sobrinha vinha à corrida. "Se passar vejo".
Havia gente do Canadá, sim senhora. Mas, como a Maria do Júlio das concertinas, havia sobretudo Élio. Ou Alex. Ou os outros, amigos e cunhados, filhos da imigração, muitos a experimentar pela primeira vez a beleza portuguesa. Élio trouxe Sandra com ele do Luxemburgo. E os filhos. Como outros arrastaram famílias, até do Brasil. Mais do que uma corrida, o PGTA são as férias que atravessam uma boa parte do norte de Portugal, com paragens em quartos com vista para a natureza.
Élio vai recomendar. Promete. Gérson, que conheceu Sá na Jungle Marathon, incrédulo por ver o português que ia vencer ser desclassificado por uma história de água de coco mal contada pela diretora de prova, já promove a Peneda-Gerês há anos: tem o logo da prova tatuado no gémeo brasileiro. E os olhos a brilhar. "Tem coisa que a fotografia não tira, está aqui na alma da gente..."
"Precioso, muchas gracias Carlos!" grita um espanhol, no empedrado de Porto Cova, nas alturas do Sistelo. Vem de braços abertos a Sá, que acalma do stresse logístico a tagarelar com uma aldeã de luto. "Os atletas estão felizes", diz-nos, na simplicidade que lhe é tão característica, olhar nostálgico a apontar às curvas da montanha pejada de "aldeias que estavam a ficar esquecidas".
As aldeias também abrem os braços, travando momentaneamente o grito das usadas rodas de madeira do carro de bois a sulcar as incertas vias romanas. Levantam timidamente uma mão. Erguem o sobrolho para ver melhor debaixo do fardo de palha que lhes cobre as cãs. Mostram-se nos largos, de negro, braços cansados caídos ao longo dos anos de solidão que ostentam, muitas vezes curvada sobre um cajado. E sorriem para as licras psicadélicas e suadas. "Ai loubado seja o sinhor!"