Simone Biles cedeu à pressão e relançou a discussão sobre a importância da força psicológica no desporto.
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Esperava-se que Simone Biles marcasse estes Jogos Olímpicos e isso realmente aconteceu. Não pelas medalhas, mas por ter enchido o peito de coragem e dado um banho de realidade, provando que até os melhores quebram. A norte-americana deixou o mundo de boca aberta ao admitir que não quis continuar na prova de grupo nem pisar o tapete nas finais individuais por questões emocionais. A ginasta, que conquistou cinco medalhas no Rio 2016 e ajudou a denunciar um escândalo sexual e superou tantas dificuldades, ganhou a medalha da vida ao provar que até aqueles que achamos que são super-heróis têm vulnerabilidades. E abriu a discussão sobre a pressão que os grandes atletas estão sujeitos.
"Pode ser uma mudança de paradigma. O meio desportivo é tão competitivo, falar destas fragilidades era quase proibido", explicou o psicólogo Jorge Silvério, ao JN. O impacto da decisão da atleta não se fez esperar e acabou mesmo por ser o assunto da semana. As expectativas de ver Simone Biles eram altas e terão mesmo sido elas a levar a esta decisão.
"Era a principal figura destes Jogos, o que traz ainda mais pressão. Ninguém tem ideia do que é suportar todas estas expectativas", acrescentou Jorge Silvério. E agora, como se ajudam os atletas que passam por isto? "Não existe uma fórmula mágica", vincou. "Cada caso, é um caso. É preciso perceber a dimensão da personalidade, da educação, da experiência dos atletas. No caso dela há alguns fatores que podem ajudar a explicar isto e que são públicos, como o facto de ter sido adotada ou a questão dos abusos sexuais por parte do médico da seleção, que está preso".
O bem estar físico e psicológico estão interligados, ainda para mais quando se fala de alta competição, mas o apoio para a mente nem sempre foi dado e até é bastante recente. "É preciso suprimir a pressão com prevenção. Em Portugal, só há bem pouco tempo é que se começou a trabalhar com esse tipo de especialistas. Há cada vez mais atletas a fazer um acompanhamento especializado e o Comité Olímpico até já tem um departamento só para essa área", explicou o ex-judoca Nuno Delgado, medalha de bronze nos Jogos de 2000.
Simone Biles não foi caso único, mas o mundo voltou a falar da importância da saúde mental graças a ela. E a provar que o assunto não tem mais de ser tabu. "Comparo os atletas aos icebergs: a parte visível são os resultados e a parte invisível, que é extremamente maior, são as dificuldades e os sacrifícios", afirmou Jorge Silvério. Desta vez, as dificuldades levaram a melhor sobre a ginasta e, às vezes, até é preciso dar um passo atrás para ficar tudo bem.
Outros casos
Naomi Osaka decidiu desistir do Roland Garros
Em maio, a japonesa desistiu do torneio de Roland Garros depois de admitir que lutava contra uma depressão. Osaka, de 23 anos, confessou o problema após faltar à conferência de imprensa, no final do primeiro jogo, informando que não falaria para proteger a saúde mental, decisão que até lhe valeu uma multa
Michael Phelps pensou no suicídio e viciou-se no álcool
O atleta com com mais medalhas olímpicas (28) de sempre travou uma luta contra a depressão e ansiedade e tornou-se dependente do álcool antes dos Jogos Olímpicos 2016. Michael Phelps admitiu que pensou no suicídio e ainda hoje o ex-nadador faz terapia e tenta ajudar atletas que sofrem dos mesmos problemas
Mamede abandonou a prova em Los Angeles 1984
Em 1984, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, Portugal também assistiu a uma desistência. Fernando Mamede era recordista dos 10 mil metros e tinha grandes hipóteses de levar uma medalha para casa, mas acabou por abandonar a prova a meio por não conseguir lidar com a pressão daquele momento
Célio Dias: "Foi duro. Tentei acabar com a vida duas vezes"
Em 2016, Célio Dias partiu para os Jogos do Rio de Janeiro com a convicção de ganhar uma medalha. Mas o judoca perdeu logo no primeiro combate e, com esse duro golpe, veio uma depressão. Hoje, o atleta, também estudante de Psicologia e professor de Preparação Física, é um homem diferente depois de ter pedido ajuda e faz os possíveis para que a sua experiência acabe com estigmas. E já pensa nos Jogos Olímpicos de 2024.
Simone Biles teve um ato de coragem?
Sem dúvida, ela foi muito corajosa. Pensa-se sempre que os atletas não podem mostrar vulnerabilidades e que têm de estar sempre no melhor quando, na verdade, estão sempre em stresse e as emoções são sempre muito flutuantes. Espero que seja uma mudança de paradigma no desporto.
Também passou por um momento difícil, depois dos Jogos Olímpicos do Rio. O que se passou?
Quando fui aos Jogos de 2016 ia para ganhar uma medalha, o ano tinha sido incrível. Mas não aconteceu. Quando perdi logo o primeiro combate, lembro-me que a primeira coisa que pensei foi "não vais chorar". Bloqueei as emoções e desencadeei um processo de alienação relativamente à realidade que me fez ter um surto psicótico. Deixei de partilhar as crenças sociais e passei a ter acesso a uma realidade que não existe.
Pediu logo ajuda?
Quem está em surto psicótico percebe que algo pode estar errado, mas o cérebro está tão cheio de estímulos que não consegue perceber que algo não está bem. Foram muito importantes, na altura, os meus amigos, o meu treinador e a minha família perceber que não estava bem e encaminharem-me para o hospital. Mais tarde, foi-me diagnosticado esquizofrenia paranoide.
Foram meses muito duros...
A depressão durou 11 meses, foi muito duro. Estive dois meses sem tomar banho, tentei acabar com a vida duas vezes. Depois desse período, treinei três meses para o campeonato do Mundo, fiquei em nono lugar e tive um novo surto psicótico.
Como é que tem sido o acompanhamento dos especialistas?
Tenho consultas semanais com a psicóloga e, de dois em dois meses, vou à psiquiatra, é transformador. Desde que tenho ajuda, sinto-me muito melhor. É possível ser atleta com vulnerabilidade mental. Tudo tem de ser falado e abordado. É muito importante adaptarmos o treino. E sei que vou estar em Paris 2024, a competir de forma igual.