Sá Pinto. A lutar pelo título polaco, o treinador do Légia de Varsóvia fala do passado e do presente. Na vida e no futebol
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Com o campeonato polaco parado desde meados de dezembro, Ricardo Sá Pinto, treinador do Légia de Varsóvia, trocou o rigoroso inverno do Leste europeu pela amenidade do clima português. Encontrámo-lo na península de Tróia, no final de um estágio de três semanas. Recebeu-nos com um sorriso largo, bem distinto do ar grave que exibiu durante todo o treino. Entre os "go, go, go" que ia gritando aos jogadores, não evitou uns quantos "vamos, carago". Ou como um tripeiro de gema, feito herói em Alvalade - no tempo em que era ele a correr atrás da bola -, nunca perdeu o ADN. Mesmo que o passar dos anos e a transição de jogador para treinador o tenham tornado bem mais ponderado.
Esse "vamos, carago" tem que se lhe diga. Continua a ser um homem fiel às origens?
[risos] Às vezes, falo em português, outras em francês. Temos 13 nacionalidades dentro da equipa. A língua oficial é inglesa, mas às vezes sai-me uma expressão portuguesa, o que é normal dentro da emocionalidade e da operacionalização do treino. E eles adoram que diga assim umas coisas. Até já imitam. Quanto a ser fiel às origens, sim, o Porto é a minha cidade. Foi lá que nasci e que vivi até aos 20 anos. É uma cidade que adoro, onde tenho os meus amigos e grande parte da minha família e onde tento sempre voltar, pelo menos no Natal. Não vou com a assiduidade que gostava, mas continua a ser a minha cidade, da qual muito me orgulho.
Desde que deixou o comando do Belenenses, no final de 2015, tem treinado sempre lá fora. Qual é a maior vantagem de trabalhar no estrangeiro?
Eu vejo sempre vantagens e desvantagens. A desvantagem é, claro, estarmos fora do nosso habitat natural, longe da família, dos amigos, do nosso país. Mas eu tenho uma paixão enorme pelo jogo, pela profissão que tenho. Há pessoas que não têm paixão no que fazem uma única vez. E eu tenho a oportunidade de viver duas vezes. Isto para mim é fantástico. Infelizmente, ainda não posso ser dono do meu futuro totalmente. Estou sujeito aos convites e oportunidades que aparecem. Não é porque eu ache que tenho de fazer a minha carreira lá fora. Vejo sempre com bons olhos a possibilidade de voltar ao meu país. Mas tem a ver com os convites que me têm feito. Depois da época fantástica que fiz no Standard de Liège, queria continuar a ir para equipas que lutassem para ganhar títulos. O Légia permite-me isso.
Está a três pontos do líder do campeonato, o Lechia Gdansk. Sente que está mais perto que nunca de conquistar um título?
Sinto. Apesar de ser um campeonato muito competitivo e de as equipas estarem muito igualadas. Mas a pressão que recai sobre nós não é igual à dos nossos rivais. As outras são equipas que se ganharem, ganharam. No caso do Légia, não é assim.
Dá-se bem com essa pressão?
Essa pressão é a minha forma de viver o futebol. Às vezes até coloco em mim uma pressão acrescida. Gosto de fazer as coisas bem feitas e vou ao pormenor, sou detalhista. Gosto de minimizar o fator sorte. Depois, se tiver de viver com o maior talento e qualidade do adversário... que remédio tenho. Mas a pressão é algo com que estou habituado a lidar, até porque, ao longo da minha carreira de futebolista, sempre foi assim. Joguei durante vários anos em clubes em que a pressão para ganhar era enorme. E gosto de viver com esse tipo de pressão.
Enquanto treinador, também já se deparou com uma série de obstáculos, nomeadamente dificuldades financeiras e saídas por incompatibilidades com a política do clube. Considera-se um resiliente por natureza?
Considero. E um inconformado. Sou muito persistente na minha forma de trabalhar e de viver a vida. Muito positivo, muito dedicado, muito apaixonado. Por vezes também orgulhoso e teimoso. Não quer dizer que não mude de opinião, quando tenho de mudar. Mas sou de ideias fixas. E tenho de ser sempre eu a perceber qual é o caminho. Nunca faço nada porque alguém me diz para fazer ou porque não está a resultar à primeira. Acredito de forma veemente na minha capacidade e na das pessoas que trabalham comigo.
Se hoje pudesse voltar a ser jogador, depois de saber o que é estar do outro lado, seria muito diferente?
Sem dúvida. Não seria tudo diferente, mas muitas coisas seriam diferentes. Até pela maturidade e pelo conhecimento do jogo. Como treinador, a génese da personalidade e a emocionalidade continuam lá, mas tenho de ser mais calmo em muitas situações. O líder também tem esse papel, de saber viver com os resultados negativos e puxar a equipa para cima. Isso mudou muito na minha forma de ser. Quando era jogador, se empatava um jogo, nem era perder, não falava com ninguém. Fechava-me em casa. Era mais forte do que eu. Como treinador, o sentimento é o mesmo, até pior, porque somos os grandes responsáveis, mas temos de ter uma atitude muito mais responsável. Fundamentalmente, é isso que muda na nossa vida.
Há pouco, falávamos das vantagens de treinar fora. Estar longe de todas estas polémicas também é uma vantagem?
Percebi que há aí uma história à volta do VAR e de arbitragens. Agora, até já há o VAR do VAR. Tenho ouvido falar disso, porque hoje em dia a informação é rápida. Mas também tenho sofrido um bocado com isso. No ano passado, acho que perdi um campeonato por causa do VAR. Uma das coisas com que não concordo é o facto de a decisão ser do árbitro. Com aquela pressão que há no relvado, com a emocionalidade que o jogo traz, com o pouco tempo que há para analisar, acho que não faz sentido. Sobretudo quando há árbitros que estão sossegados numa sala, com tempo para verem as imagens e mesmo assim não conseguem decidir. Só por aí se percebe que há coisas aqui que têm de mudar.
Acha que os árbitros evoluíram muito desde o seu tempo de jogador?
Acho. Tive árbitros horríveis, promíscuos. Percebia-se claramente que eram tendenciosos. Hoje, pode haver uma relação clubística sentimental, pode haver uma amizade ou outra, mas são muito mais profissionais e estão muito mais bem preparados. Têm outra cultura, outra forma de estar. Antigamente nem se podia dizer um ai a um árbitro, que ele insultava-nos, gozava connosco, dava-nos cartões. Senti muito isso. Ainda por cima, era um jogador emocional. Não os insultava, mas gostava de falar com eles. Dizer "não é falta, é falta", mas não passava disto. Às vezes, podia ser chato e persistente, mas não merecia levar cartões a toda a hora.
E os dirigentes, evoluíram?
Nem tanto. Acho que aí há pouca diferença. Não vejo uma nova geração de dirigentes a aparecer. Vejo pessoas diferentes, com uma um nível diferente em alguns clubes, mas não uma diferença na estrutura. De qualquer forma, não posso dizer que os dirigentes são maus. Todos lutam pelos seus interesses, continuam a ser polémicos nas alturas cruciais, quando não há uma arbitragem positiva. Muitas vezes, só vemos um lado do dirigente, porque ele acha que tem de fazer aquele papel. Também me costumam dizer que me achavam um tipo muito conflituoso, mau feitio e que afinal sou um gajo porreiro, impecável, divertido.
Que raio-X faz aos três grandes do futebol português?
Não tenho acompanhado assim tanto, mas acho que está tudo mais igualado. O F. C. Porto ganhou a Supertaça, o Sporting a Taça da Liga. Até nas meias-finais da Taça de Portugal estão os quatro grandes.
O F. C. Porto segue na liderança do campeonato. Tem sido a equipa mais consistente até ao momento?
O F. C. Porto tem feito uma época regular. Também é preciso ver que houve mudança de presidente no Sporting, mudança de treinador do Benfica e no F. C. Porto manteve-se tudo mais ou menos igual. Isso também dá maior estabilidade. Mas nada está definido.
Não esconde que Sérgio Conceição, o homem que conduziu o F. C. Porto ao título que interrompeu uma senda vitoriosa do Benfica, é seu amigo de longa data. Considera-o o responsável pelo início de uma nova era?
Isso não sei, mas que está a fazer um trabalho muito bom no F. C. Porto, está. Tem mostrado grande competência, está a ter excelentes resultados e é o grande líder de todo este processo. Profissionalmente, não misturo as coisas, até porque de hoje para amanhã posso estar a treinar contra ele, mas, pessoalmente, fico feliz por ele estar bem.