De discurso fácil, muitas vezes efusivo, Vasco Seabra abriu o livro sobre o passado e o presente. O passado de quem levou o Moreirense ao oitavo lugar e depois caiu no desemprego. Mas também o passado de quem sentiu que teve pouco tempo para construir alicerces mais fortes no Boavista. O treinador, de 38 anos, abordou ainda o atual momento do futebol português, as arbitragens, os presidentes e explicou quem são os jogadores mais interessantes da Liga. Uma hora de conversa que passou a correr.
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Há sempre muitas críticas. O que tem estragado o futebol português, as polémicas, as críticas às arbitragens ou os dirigentes?
Gostamos dos programas que não falam de nada a não ser de polémica e de ir ao pormenor se o treinador devia ter feito esta ou aquela substituição. Mas faria mais sentido analisar o que os jogadores têm trazido de tão bom ao futebol, porque eles são a parte mais importante do jogo. Temos bons árbitros, bons jogadores, bons treinadores.
E temos bons presidentes?
Temos bons presidentes, mas que por vezes precisam de confiar mais nas pessoas que contratam. Ninguém quer desvalorizar jogadores, porque isso implica que os resultados serão piores e o treinador ficará mais frágil. Todos queremos ganhar e o sucesso do técnico será o do clube. Que não seja o clube a decidir tudo e o treinador um veículo que tanto está lá agora, como não estará a seguir. Quanto mais o treinador estiver envolvido com o presidente melhor serão os resultados. Temos bons presidentes, mas eles têm de acreditar nos treinadores que têm.
Nunca teve presidentes que lhe quisessem fazer a equipa ao fim de semana?
Tive presidentes que gostam de saber o porquê do treinador fazer isto ou aquilo. Mas tenho uma ideia muito clara. Sou uma pessoa aberta a que possamos conversar, mas muito fechada quando me querem dizer o que tenho de fazer. Se me fizerem isso, será um momento de choque. Quando contratam um treinador não estão a contratar um funcionário para fazer um trabalho. Um técnico toma decisões. Não sou muito de empurrar com a barriga, nem de dizer aos jogadores e ao presidente o que eles querem ouvir.
Depois do oitavo lugar no Moreirense, porque não continuou?
No final sentimos que a forma como nós e o clube víamos o processo, seja na vertente do jogo seja na forma de abordar determinados temas mais internos, não estava direcionado no mesmo caminho.
Foi uma opção ter ficado no desemprego?
Foi uma opção. Na Liga não houve muitas trocas de treinadores e nós sabíamos que independentemente de ficarmos no desemprego ou de termos clube, não podíamos aceitar qualquer coisa. O que apareceu não era de acordo com expectativas. Surgiu a hipótese de ir para fora, mas os locais não eram os mais apetecíveis.
Com explica o mau momento do Moreirense?
Todas as equipas têm momentos menos felizes. O Moreirense tem um bom plantel, um bom treinador, uma boa estrutura e dois campos de treino de sonho. Mas neste início de campeonato teve jogos complicados. Agora os jogos vão ser mais no registo da equipa e eles podem inverter a situação.
Mas o presidente Vítor Magalhães tem pouca paciência com os treinadores...
De facto, é um clube que muda muitas vezes de treinador. Tem um presidente que gosta de estar presente na dinâmica do clube, porque o trouxe desde os escalões inferiores e vive muito as ambições, o que nem sempre é positivo. Saí do Moreirense porque, naquele momento, não tínhamos visões idênticas, mas isso não quer dizer que no futuro não possamos voltar a trabalhar juntos.
Começou a época passada no Boavista e depois saiu. Sentiu que deixou fugir uma oportunidade para se afirmar num clube de outra dimensão?
Não senti isso, mas sinto que saímos algo cedo. A escolha pelo Boavista foi acertada, é um clube grande, que tem uma enorme dimensão de adeptos. Mas houve demasiada precipitação. Entraram 18 novos jogadores, chegando a conta gotas, de diferentes nacionalidades e de contextos diferentes. Tínhamos muitos jovens, alguns não estavam preparados para a Liga e poucos jogadores que pudessem passar a mística do clube. A expectativa criada foi demasiada alta. Falou-se em lugares da Europa de forma exagerada e isso criou uma falsa sensação da realidade.
Ficou magoado com o Boavista?
Não, fiquei com sensação que podíamos ter feito mais. Que podíamos ter tido mais tempo para as coisas acontecerem. Não foi dado o tempo suficiente para que as coisas tivessem outro protagonismo.
Há pouco elogiou os árbitros, mas porque acha que há tantas polémicas com eles?
Os árbitros são muito bons, são capazes e competentes, mas tal como os treinadores, jogadores e dirigentes também erram. Temos de lhes dar mais margem para estarem tranquilos. Quanto mais formos ao pormenor, de tudo o que acontece no jogo em relação ao árbitro, menos serenidade lhes vamos dar. Não acredito que haja árbitros que queiram errar propositadamente. Desafio qualquer pessoa a ser criticada todos os dias e depois ir para um jogo e tomar decisões.
Quem são os culpados dessas críticas?
Somos todos e eu o incluo-me nessa lista. Por vezes queremos agarrar a parte mais fácil e dizer que o árbitro falhou. Temos todos de tornar o nosso jogo melhor. Para isso, temos de olhar mais para os nossos jogadores e para as nossas equipas e os dirigentes olharem para a forma como gerem os clubes. Era também importante os programas de televisão e os jornalistas falarem menos dos árbitros.
Não sente que há treinadores que querem imitar outros e deixam de ser eles próprios?
Passamos por isso no nosso crescimento. Temos os nossos ídolos. Mas uma coisa são as pessoas que nos influenciam, outra é deixarmos de ser quem somos. Se formos quem não somos, não vamos ter sucesso. Se quisermos copiar os outros, a máscara vai cair e nunca mais teremos hipótese de liderar um grupo.
Quem são as suas influências?
Rui Quinta, Paulo Fonseca, Álvaro Pacheco, Jorge Jesus, Sérgio Conceição, Vítor Pereira e, obviamente, o Mourinho. O Guardiola, o Sarri e o Tuchel. São treinadores que provocam coisas diferentes no jogo. Depois, o Vítor Oliveira que tinha uma liderança brutal. É uma referência de nível mundial. Nunca foi campeão na Liga? Mas isso diz muito pouco. v
Qual é equipa mais complicada de anular na Liga?
É difícil. Todas elas têm diferentes características que provocam dificuldades distintas. O F. C. Porto está com um jogo mais diferenciado porque consegue ter capacidade de assumir e surgir de forma mais criteriosa, provocando a profundidade, mas também esperando para atacar no momento certo. O Benfica, com as duas formas de jogar, está muito forte e consistente. Não deslumbra do ponto de vista estético, mas é capaz de fazer golos e dominar o adversário. O Sporting mantém o padrão, é muito intenso, competitivo e difícil de contrariar. O Braga está a passar por uma fase de se reencontrar com as entradas e saídas de jogadores, mas vai ser difícil de anular. O Estoril assume o jogo e a bola e é difícil de pressionar. Vai ser um campeonato muito competitivo.
Quem são os jogadores que mais tem apreciado?
Gosto de vários. O João Mário acrescentou muitas coisas ao Benfica, o Sporting tem muita juventude com qualidade, como o Matheus Nunes. No F. C. Porto gosto do Fábio Vieira e do Vitinha, de quem acho ser um sobredotado do jogo, e o Luiz Díaz está num momento incrível e pode fazer uma época brilhante. Gosto também do André Franco e do Chiquinho do Estoril, do Samu do Vizela, do Morita e Lincoln do Santa Clara ou do Iván Jaime do Famalicão. Isto de jogadores que não treinei, porque se falar desses tenho uma paixão por todos eles, nomeadamente o Yan, o Pires ou Filipe Soares, do Moreirense. Têm muito potencial.
O que vê no Vitinha para dizer que é um sobredotado?
Está com o treinador certo e no contexto certo. Parece que vê o jogo um segundo antes de todos os outros. Tem qualidades para jogar entrelinhas, fora do bloco ou em construção. Consegue pausar e acelerar o jogo, mas quando tem de ir atrás do adversário e pressionar também o faz. O Sérgio Conceição, pela sua exigência, vai-lhe provocar um crescimento enorme. O João Mário também está a mostrar coisas incríveis.
Na época passada não perdeu um jogo com o Benfica. Como explica isso?
Não foi fruto do acaso. Defrontámos o Benfica pelo Boavista e pelo Moreirense e estudámos o adversário ao máximo. No Boavista ganhámos por 3-0 quando eles vinham de cinco vitórias seguidas. Alterámos a nossa forma de pressionar para anular os pontos fortes deles e para dar conforto aos nossos jogadores. No Moreirense tentámos fazer coisas idênticas, mas não dominámos tanto. No Moreirense jogámos com os três grandes em casa e não perdemos nenhum jogo.
Treinou o Diogo Jota no Paços de Ferreira. Ele nunca lhe deu dicas sobre a forma de trabalhar do Klopp?
Nunca gosto de expor aquilo que conversámos. O Diogo é muito competitivo, mas com uma humildade gigantesca. Não imaginava que chegasse tão cedo a este patamar, mas ainda assim continua a ser o mesmo. Chegou ao Liverpool e mesmo tendo pela frente um tridente ofensivo estratosférico, consegue jogar. Isso é sinónimo da sua personalidade.
CV
Data de nascimento: 15/09/1983 (38 anos)
Naturalidade: Paços de Ferreira
Percurso como treinador: Paredes, Leça, Lixa, Paços de Ferreira, Famalicão, Estoril, Mafra, Boavista e Moreirense