Clubes entendem que treinar, com limitações, sem competir prejudica o desenvolvimento dos jovens jogadores. Só o Benfica relativiza a questão.
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É mais uma das intermináveis consequências da pandemia. O futebol de formação em Portugal, ao contrário do que já acontece em países como França, Inglaterra e Itália, continua limitado a treinos individuais, com proibição de competições entre as equipas. Depois de, na época anterior, terem sido interrompidos em março, os campeonatos dos escalões jovens continuam parados. Quase oito meses depois, não há solução à vista, por muito que os clubes tenham reuniões frequentes com o Diretor Técnico Nacional, José Couceiro, cuja vontade de resolver a situação é, ao que apurámos, a melhor possível. O agravamento da crise sanitária não está a permitir que o cenário em Portugal continental mude (na Madeira e nos Açores a realidade já é diferente) e outubro, apontado como provável para o regresso das competições, vai acabar sem que os jovens futebolistas possam fazer o que mais gostam.
O JN ouviu cinco dos principais clubes portugueses sobre o tema e também procurou obter uma reação da Federação Portuguesa de Futebol e da Direção-Geral da Saúde. Da FPF, a resposta foi nua e crua: "Não há nada de novo a dizer sobre esta matéria". Da DGS, algo semelhante: "Estamos a acompanhar atentamente a situação e permanentemente a avaliá-la em função da atividade epidémica".
Quanto aos responsáveis da formação de F. C. Porto, Benfica, Sporting, Rio Ave e V. Guimarães, cuja opinião pode ler na página ao lado, o discurso de preocupação é transversal, embora no clube da Luz seja evidente a pressão nula sobre as autoridades de saúde, que vai na linha do que as águias têm feito relativamente à questão do público nos estádios: "O essencial, face à situação que vivemos, não é o regresso das competições. Há coisas mais importantes para o nosso futuro coletivo", diz Pedro Mil Homens, diretor geral da formação benfiquista.
Os cinco clubes ouvidos pelo JN sublinham a necessidade de cumprir escrupulosamente as regras da DGS e de manter todos os cuidados na logística dos treinos, mas alerta-se para o facto de se estar a perder terreno num setor primordial para o futebol nacional. "As restrições podiam evoluir e permitir jogos em treino, de quatro contra quatro, oito contra oito", sugere Tomaz Morais, diretor da formação do Sporting. "As consequências são inevitáveis se esta situação se mantiver", sublinha António Natal, coordenador da formação do F. C. Porto..
REGRAS DA DGS
Treino individual
Os treinos são individuais e feitos com distanciamento entre os jogadores. Estão proibidos os jogos em treino, as chamadas peladinhas, e é proibido o contacto físico.
Passes à distância
Os jogadores podem trocar a bola, mas com passes à distância, para não quebrarem a regra do distanciamento. Todos os espaços, materiais e equipamentos devem ser submetidos a limpeza e desinfeção.
Espaços diferentes
Os clubes devem evitar o agendamento de treinos simultâneos com partilha de espaço por equipas de escalões diferentes. Funcionários, treinadores e atletas devem efetuar a auto monitorização diária de sinais e sintomas.
Estratégias para manter a motivação dos atletas
"Os jogadores perguntam todos os dias aos treinadores se há novidades quanto ao regresso dos jogos". É assim que António Natal, coordenador da formação do F. C. Porto, descreve a "ansiedade" com que os jovens futebolistas dos dragões estão a viver a atual situação de estarem a treinar, ainda que em condições muito específicas, sem poderem jogar. "A competição é, de facto, essencial para os jogadores. Esta questão de não haver jogos é muito importante e preocupa todo o país. Temos tido reunião com o Diretor Técnico Nacional, José Couceiro, e há uma grande vontade de resolver o problema, mas as coisas não têm evoluído muito", revela, com "otimismo", apesar dos números atuais da pandemia. "As consequências são inevitáveis se esta situação se mantiver porque a velocidade de aprendizagem é muito maior na formação. No F. C. Porto, temos o gabinete de psicologia a trabalhar, em conjunto com o departamento médico, para encontrar estratégias que ajudem a manter a motivação dos atletas", acrescenta.
Recorrer à imaginação e encontrar soluções
Para Pedro Mil Homens, diretor-geral da formação do Benfica, o "essencial não é o regresso das competições" dos escalões jovens, porque "o mais lúcido e responsável" é perceber a "viabilidade" das mesmas no "atual contexto" da pandemia. "Naturalmente que um hiato de uma época desportiva na vida de um jovem atleta não seria o que todos desejaríamos. Há que entender o atual contexto em que todos vivemos e saber entender as necessidades destas limitações", realça o diretor do clube da Luz, salientando a necessidade de "transformar uma dificuldade numa oportunidade", para fazer com que os clubes e os treinadores sejam mais criativos: "Vamos transformar a dificuldade do momento - ausência de competições - numa oportunidade para centrar mais o treino no desenvolvimento individual dos nossos jogadores. Refiro-me a uma visão 360 do que deve ser a abordagem ao desenvolvimento individual de um jovem jogador. Há que recorrer à imaginação do treinador e encontrar as melhores soluções", destaca.
Processo formativo interrompido preocupa
"O que mais me preocupa não são os aspetos técnicos e físicos, mas que os jovens jogadores se possam atrasar na leitura cognitiva do jogo". Eis o resumo das preocupações de Tomaz Morais, diretor da formação do Sporting, segundo o qual "por vezes é difícil explicar aos mais novos a razão de não haver jogos". Morais garante que o clube de Alvalade cumpre "desde o primeiro minuto" as regras da DGS e tem como objetivo "minimizar o impacto" que esta situação tem nos diversos escalões de formação. "Temos psicólogos a trabalhar, somos mais incisivos no controlo nutritivo, corrigimos problemas físicos e implementamos situações que lhes permitam ganhar massa muscular, fazemos treinos por tarefas, treinos não presenciais e em formato vídeo, mas se para um adulto não é fácil lidar com a ausência de competição, claro que para uma criança ou para um jovem também não é", refere o diretor leonino, preocupado com a possibilidade de haver jogadores que estão a chegar ao nível sénior com o "processo formativo interrompido".
Ansiedade é enorme e há muitas implicações
No Rio Ave, só a partir dos sub-16 é que as equipas já começaram a trabalhar, numa época que Joaquim Jorge, coordenador da formação do clube vila-condense, define como "anormal" em relação a todas as outras. "Há uma ansiedade enorme e muitas implicações para os jogadores. Em idades mais baixas, a falta de competição poderá ser compensada mais tarde, mas à medida que os escalões sobem tudo é ainda mais complicado. Se quando um jogador tem uma lesão que o impede de jogar durante muito tempo isso é um problema, imaginem o que é para uma equipa inteira estar há sete meses sem competir. E sem perspetivas de que a situação se resolva em breve", afirma. "Depois do que se passou na época passada, com a interrupção da atividade e dos campeonatos, os jovens estão todos ainda mais ávidos de treinar e de jogar. Com as limitações que as regras da DGS impõem, temos definido objetivos paralelos, com competições nos treinos, mas as implicações no processo evolutivo dos jovens são enormes", sublinha.
Custos brutais e perdas irreparáveis
"Há jogadores que passaram a adolescência a alimentar o sonho da equipa sénior e que agora se veem privados de competir para lá chegar", alerta Carlos Campos, diretor-técnico da formação do Vitória de Guimarães, que fala em "custos brutais" e "perdas irreparáveis" para os jovens futebolistas com a atual falta de competição entre os clubes. "As nossas equipas B e sub-23 não resolvem o problema e é, de facto, muito urgente que se possa voltar aos campeonatos de perfil mais alto na formação. São já muito meses sem competição e há jogadores que vão ficar para trás", refere. "Claro que o regresso da competição não é mais importante do que a saúde pública. Essa está sempre em primeiro lugar, mas sem jogar estamos a perder terreno", acrescenta, salientando a "complexidade da logística", imposta pelas regras da DGS, e o "investimento que é preciso fazer ao nível dos recursos humanos", mesmo com a "redução do número de treinos semanais" dos escalões etários mais baixos, que começaram a treinar no início de outubro.