O PSD anunciou esta semana que vai entregar um projecto de revisão constitucional até ao final desta sessão legislativa, que ocorre a 15 de Setembro. A intenção tinha sido anunciada pelo líder do partido, Pedro Passos Coelho, no congresso realizado em Abril, tendo sublinhado na altura que uma das suas prioridades iria ser a promoção de um processo de revisão da Lei Fundamental em matérias como a legislação eleitoral e a questão dos reguladores, essenciais para mudar a relação entre o Estado e as empresas.
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O tema não reúne consenso entre os demais partidos com assento parlamentar e, na quinta-feira, CDS-PP, Bloco de Esquerda e PCP questionaram o PS e o Governo, em plenário da Assembleia da República, sobre a eventual existência de um acordo entre os socialistas e os social-democratas nesta matéria. Isto apesar do PS, pela voz de Francisco Assis, ter anteriormente garantido que "[O PSD] não contará com o PS em qualquer processo de revisão constitucional que tenha em vista colocar em causa as partes essenciais do Estado de Direito".
A Constituição da República Portuguesa foi objecto de sete processos de revisão desde a sua aprovação, no dia 2 de Abril de 1976 (na derradeira sessão da Assembleia Constituinte). A última foi em 2005, através do aditamento de um novo artigo, que permitiu a realização de referendos sobre a aprovação de tratado que vise a construção e o aprofundamento da União Europeia.
Cinco anos após a publicação da última revisão (o prazo mínimo estipulado por lei), as opiniões dos constitucionalistas e politólogos dividem-se quanto à necessidade de nova revisão, bem como à relação da Constituição com as decisões das instâncias judiciais comunitárias.
A iniciativa da revisão constitucional é da exclusiva competência dos deputados, sendo necessária a sua aprovação por uma maioria de dois terços. O mesmo é dizer, explica Filipe Carreira da Silva, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, que "a possibilidade real da revisão depende de uma coligação de forças: no mínimo, dois partidos têm de estar de acordo para viabilizar essas alterações". Contudo, o próprio texto constitucional impõe limites materiais à sua revisão, nomeadamente, quanto ao sufrágio universal directo, secreto e periódico e à forma republicana de Governo.
Um dos motivos avançados pelo líder do PSD para promover um processo de revisão constitucional prende-se, precisamente, com o quadro das leis eleitorais. "Mas esta é uma questão complexa", começa por dizer Jónatas Machado, professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. "Os ingleses querem alterar o seu sistema eleitoral de maioritário para proporcional. Nós pensamos agora em círculos uninominais. Pessoalmente, acho que neste momento não faz muito sentido levar-se a cabo uma revisão constitucional", sustenta.
Pelo contrário, Jorge Bacelar Gouveia, professor catedrático da Faculdade de Direito das universidades Nova de Lisboa e Autónoma de Lisboa e deputado à Assembleia da República pelo PSD, defende haver, na Lei Fundamental, "aspectos em que carece de manifesta revisão". Como sejam as áreas da Justiça, dos direitos sociais, do sistema políco e eleitoral, entre outras.
"A crise económico-financeira, em vez de impedir, deve acelerar a revisão da Constituição porque ela contém, em parte, constrangimentos ao lançamento ou ao aprofundamento de muitas reformas, respectivamente, não feitas ou inacabadas", defende.
Sem se pronunciar directamente sobre a pertinência, ou não, de um processo de revisão constitucional no actual contexto político e económico, Filipe Carreira da Silva contrapõe, argumentando que "podem ser realizadas importantes reformas políticas sem se mexer na Constituição, tal como é possível utilizar a Constituição para bloquer reformas, amordaçar o debate ou transferi-lo para outras esferas, como os tribunais. Isto é empobrecedor da nossa vida democrática".
Mais do que uma alteração do texto constitucional, Jónatas Machado defende uma alteração de comportamentos. "Interessa-me o combate ao clientelismo, ao nepotismo, à corrupção e à incompetência. Infelizmente, disso temos muito, mas não é alterando a Constituição que se passam a praticar as virtudes cívicas e demoráticas", conclui.
Constituição e Direito Comunitário
Independentemente de haver, ou não, motivos para um novo processo de revisão constitucional, há uma questão de fundo que permanecerá e que também divide a opinião dos especialistas. O papel da Constituição Portuguesa face a decisões de instâncias judiciais comunitárias, nomeadamente, do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Jónatas Machado considera que "muitas das matérias relevantes já não passam pelo Direito Constitucional, mas pelo Direito Comunitário". Este professor de Direito Constitucional sublinha que a Lei Fundamental "é hoje parcial e muito condicionada" pelas decisões daqueles dois tribunais. Lamenta que "alguns dos nossos políticos" não se tenham "apercebido desta alteração de paradigma" e continuem "na velha escola". "Como cada vez mais matérias tocam questões de Direitos Humanos e da União Europeia, cada vez menos matérias ficam para as nossas autoridades", diz Jónatas Machado.
Jorge Bacelar Gouveia concorda. "Eis um problema insolúvel, porque tem havido um diálogo de surdos entre as instituições nacionais e as europeias neste ponto", advoga, explicando que "a solução tem sido preventiva", ou seja, "a de evitar que os conflitos apareçam e, assim, não pôr à prova quem prevalece sobre quem". Este catedrático refere, ainda, que "a Constituição contempla uma norma salomónica no artigo 8.º, n.º 4, segundo a qual o primado do Direito da União Europeia não é absoluto". O mesmo é dizer que "este Direito não pode prevalecer sobre os princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático protegidos pela própria Constituição".
Filipe Carreira da Silva não vê conflito entre o Direito Constitucional português e o Direito Comunitário. "A Constituição é essencial à protecção das liberdades e direitos fundamentais dos portugueses. Os tribunais nacionais são o garante deles", sustenta. Este investigador do ICS/UL defende que "apenas quando estes actuam deficientemente, ou quando aqueles que a eles recorrem não concordam com as suas decisões" é que os "tribunais internacionais servem de nível acrescido de garantia".