O Governo prepara-se para privatizar total ou parcialmente algumas das empresas de que é accionista, prevendo o encaixe de seis mil milhões de euros nos próximos três anos. A medida de excepção, que faz parte do PEC (Programa de Estabilidade e Crescimento) 2010-2013, deve-se à necessidade de obter receitas num curto espaço de tempo para amortizar a dívida pública, que deverá superar os 90% em 2012.
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Em causa estão empresas onde o Estado é accionista único (como a TAP, os CTT e a área seguradora do Grupo Caixa Geral de Depósitos) ou não (casos da Galp - 7%, REN - 49% ou EDP - 20%), mas também activos detidos fora do país (como sejam na Hidroeléctrica de Cahora Bassa, em Moçambique, ou a Sociedade Mineira do Locapa, em Angola).
Na recente história da democracia portuguesa, nunca se assistiu a privatizações no Sector Empresarial do Estado de forma tão urgente e devido exclusivamente à necessidade de baixar a dívida pública. Como lembram alguns economistas, as privatizações realizadas na década de 90 serviram essencialmente para dinamizar a economia e o tecido empresarial e realizaram-se após um "debate profundo" sobre as áreas estratégicas para o Estado.
Alguns analistas políticos consideram que esta decisão do Governo de José Sócrates não tem legitimação política, por não constar no programa apresentado pelo Partido Socialista aquando das eleições legislativas de Setembro do ano passado, e transmite para o exterior a imagem de um Portugal falido.
Mais do que isso, pode comprometer o futuro do país. "A médio e longo prazo podemos concluir que estas privatizações não deveriam ter sido feitas e, aí, já será tarde", alerta o economista João Carvalho das Neves.
A solução não é um exclusivo de Portugal. No início de Junho, o Governo grego anunciou igualmente um conjunto de privatizações (especialmente, no sector dos transportes e nos correios), com o qual espera arrecadar cerca de três mil milhões de euros até 2013, para fazer face à profunda crise económico-financeira em que o país está mergulhado. Mas Portugal ainda não se encontra na mesma situação da Grécia.
Economistas e analistas políticos contactados pelo JN vêem com bastante preocupação a intenção do Governo de querer levar a cabo novas privatizações no Sector Empresarial do Estado. Para João Carvalho das Neves, professor catedrático no ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão), o mais grave é o facto de a decisão não ter sido antecedida de "um debate sobre quais devem ser as áreas estratégicas do Estado". "As privatizações voltaram à baila por necessidades financeiras. Não houve uma reflexão estratégica, como aconteceu aquando das privatizações feitas no tempo em que Cavaco Silva era primeiro-ministro", recorda.
Em 1989, com o apoio do Partido Socialista, o Governo de Cavaco Silva conseguiu a maioria de dois terços no Parlamento necessária para fazer aprovar, aquando da segunda revisão constitucional, a lei das privatizações (que entrou em vigor em Abril do ano seguinte). "Nessa altura, as privatizações serviram essencialmente para desenvolver a bolsa de valores e conferir maior eficiências às empresas e à economia", refere João Loureiro, economista e professor na Faculdade de Economia da Universidade do Porto.
Adelino Maltez, professor na Faculdade de Direito da mesma universidade, tem uma visão pessimista em relação a esta matéria. "Criou-se uma grande ilusão com as nacionalizações de 1975. Custaram muito caro e, no caso de algumas empresas, valia mais terem-nas deixado falir", defende. "Agora, as regras do jogo internacional, ou seja, a globalização, obrigam, em termos ideológicos, a vender a alma ao diabo", acrescente, referindo-se à intenção do Governo de avançar com novas privatizações.
Além da falta de discussão prévia sobre o tema, André Freire, professor de ciência política no ISCTE (Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa), considera que a decisão do governo está ferida de "legitimação política", uma vez que estas privatizações não constavam do programa eleitoral que o Partido Socialista apresentou às eleições legislativas do ano passado. "Isto é uma subversão do princípio democrático de que são os eleitores que decidem sobre matérias como esta. O mesmo aconteceu com o casamento entre pessoas do mesmo sexo", refere este analista político.
André Freire afirma que a forma como as operações de privatização foram anunciadas e os fins a que se destinam passam a imagem de que "a propriedade pública e os bens públicos não têm qualquer importância. Tudo é feito ao sabor das conjecturas". Por isso, espera que "os contrapesos do poder, nomeadamente, o presidente da República" actuem, uma vez que está em causa "o regular funcionamento das instituições".
Por seu turno, António Costa Pinto, investigador principal no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, recorda que "uma parte da consolidação da democracia portuguesa se fez à custa da privatização de empresas". Principalmente a partir da segunda revisão constitucional, em 1989, quando é retirado o artigo que determinava a irreversabilidade das nacionalizações levadas a cabo a seguir ao 11 de Março de 1975, e se começou um novo ciclo económico com a privatização da banca (à excepção da Caixa Geral de Depósitos) e dos seguros.
Este professor universitário salienta ainda o facto de, em Portugal, haver um relativo consenso entre a Esquerda e a Direita no que respeita a privatizações. "Não temos uma direita ultra-liberal, que tudo quer privatizar", refere, sublinhando que há duas áreas em que o debate se faz de uma forma "mais acesa": a saúde e a educação.
João Carvalho das Neves não entende por que razão tal acontece. "Nos Estados Unidos, por exemplo, as melhores universidades são as privadas", salienta, acrescentando: "Não entendo por que continua a haver um peso tão grande de universidades públicas em Portugal".
Tanto o professor do ISEG como André Freire são taxativamente contra a existência de "golden share", que podem ser decididas administrativamente pelo Governo aquando das operações de privatização. "Se o Estado quer ter uma posição privilegiada, deve manter os 51%. Um dia usa-se o direito de veto [referência ao caso PT/Telefónica), no outro quer privatizar-se. Que imagem se está a passar aos investidores?", questiona João Carvalho das Neves.
Todos são unânimes num ponto. "O que se vai ganhar na redução da dívida pública, não vai compensar o que se vai perder em termos de receita no futuro", frisa André Freire.