O alarme partiu da deputada Elena Mizulina, presidente da comissão parlamentar "para assuntos da família, das mulheres e das crianças" da Rússia - actualmente, há 697 mil órfãos, enquanto que na década de 1940 se tinha chegado ao pico de 678 mil.
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Hoje, estimase que dois terços das crianças a cargo do Estado são "órfãos sociais", resultantes de situações em que as autoridades foram forçadas a retirar o poder pátrio aos pais. Além disso, nos últimos dois anos foram devolvidas, às instituições do Estado cerca de 30 mil crianças que se encontravam num processo de adopção, o que, segundo os especialistas, constitui um trauma suplementar para aquelas crianças. O problema foi levantado por causa da "devolução" aparatosa de Artiom Savelev, o menino adoptado por uma cidadã americana e que foi devolvido, colocando-o num avião de Washington para Moscovo com uma carta dirigida às autoridades. Afinal, na própria Rússia as "devoluções", ainda que menos aparatosas, são, pelo número, muito mais preocupantes.
"Em 2008, era o Ano da Criança, e as autoridades lançaram uma operação para "esvaziar" os orfanatos", explica Gregori (pseudónimo) director da "Casa para as Crianças", adiantando que todos os anos o Estado assume a seu cargo entre 100 mil a 120 mil crianças. Nas estatísticas oficiais, verifica-se que, em 2008, a percentagem de adopções e formas semelhantes ultrapassaram em 30% o número de crianças que as organizações de tutela da criança têm que regular. Era o pico das adopções. A campanha publicitária, associada a significativos incentivos económicos para quem assumia a seu cargo a educação dos órfãos, fez o seu efeito, mas já na altura se ouviam vozes experientes, que prognosticavam "um retorno" das crianças dentro de pouco tempo. Passados dois anos está-se a atingir o pico das "devoluções". "Uma criança muda o ritmo de vida de uma família, e se isso é assim quando se trata de um filho natural, é ainda mais quando se trata de uma criança adoptada", explica Gregori, notando que muitas famílias não estavam preparadas.
A culpa do álcool
Muitas crianças chegam aos orfanatos já com traumas profundos. O caso de Lena, que vivia numa pequena povoação do interior da Rússia, com quatro irmãos de diferentes pais, a mãe mudava frequentemente de parceiro, o abuso da vodka era regular. As crianças foram vítimas de agressões e abusos por parte dos homens que frequentavam a casa, pelo que começaram a fugir regularmente. Os vizinhos acabaram por alertar as autoridades. Foram retirados os direitos à mãe que, passado algum tempo, foi presa por motivos criminais. "Agora saiu da prisão, arranjou um trabalho e diz que quer os filhos outra vez", acrescenta Gregori, adiantando que, para as crianças, "a mãe é sempre a mãe". Mesmo vítimas destas situações muito pesadas, elas continuam a justificar o comportamento materno e o alcoolismo como "doença".
Um momento crucial é a inserção na sociedade de quem passou a infância numa instituição onde tudo estava organizado. "Nas instituições estatais não existe o conceito de remendar uma peça de roupa. As crianças sabem que se a camisa tem um buraco, vão ter com a educadora, entregam-lhe a camisa com o buraco e recebem outra", explica Gregori. Quando, aos 18 anos, se confrontam com a necessidade de se governarem, as coisas tendem a complicar-se. Todos têm um lugar onde residir e uma conta no banco que se foi constituindo durante os anos passados no orfanato, mas alguns gastam o dinheiro todo num ápice.
As crianças da rua
Muitas outras crianças constituem problema à parte - são as crianças da rua, que se multiplicavam, há poucos anos, nas estações de Moscovo. "Actualmente são muito menos", refere Tatiana Svechnikova, que se dedica a estes casos. Nos anos 1990, "eram simplesmente crianças infelizes e abandonadas que tinham ficado sem lar. Os pais vendiam os apartamentos por causa do álcool e as crianças ficavam na rua".
Agora, as crianças e adolescentes que vivem na rua são quase todas toxicodependentes. "Tornam-se drogados porque se encontram na rua. Depois, não querem voltar para casa porque caíram naquela situação", explica. Foram mais de 70 as crianças que seguiu nos últimos anos, e os epílogos destas histórias poucas vezes são felizes. Numa estação secundária de Moscovo, no espaço vazio entre os blocos de cimento, vivia número indeterminado de crianças. "Entre esses, cinco ou seis morreram, nos últimos dois anos. Um porque se picava, outro por álcool, outro numa briga...", e diz que a assistência que se pode dar é "ouvi-los, depois com um vais ao hospital, outro levamo-lo de volta ao orfanato". Tatiana adianta que, na Rússia, ainda é comum mandar para o hospital psiquiátrico as crianças problemáticas; por isso, os que fogem dos orfanatos têm medo de voltar. Mesmo assim, há quem consiga sair do vórtice e inserir-se num ritmo normal de vida.