<p>Nem as leis escapam à filosofia socratiana do Simplex. Cerca de 300 leis obsoletas serão revogadas este ano, segundo os planos do Governo no âmbito do Simplegis, um programa que promete uma legislação mais simples e acessível a todos. Este "simplex legislativo" traça como objectivos a transposição das directivas europeias dentro do prazo, novas leis com menos erros e até manuais de instruções. </p>
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Para já, abundam as dúvidas. Não deveriam já ser cumpridos os prazos legais? Será razoável esperar que uma percentagem das leis contenha erros? Haverá duas versões da mesma lei? Em suma, que consequências práticas terá o Simplegis na vida dos portugueses?
Segundo o Governo, "serão elaboradas versões consolidadas dos diplomas que permitem dar a conhecer a versão em vigor a cada momento". Tudo estará acessível num novo portal de informação legislativa. Assim, cidadãos e empresas poderão ter melhor acesso e compreensão do conteúdo das leis, defende o Governo. Depois, para uma melhor aplicação, serão criados dez manuais de instruções, "escritos em linguagem simples, clara e acessível para que todos - aplicadores e destinatários - possam compreender as novas regras", lê-se no programa.
Além disso, o Executivo sabe, a priori, que irá "revogar mais legislação do que aquela que venha a ser aprovada" e que menos leis simplificam a vida de cidadãos e empresas. O Simplegis compromete-se ainda a "não ser necessário rectificar decretos-lei e decretos regulamentares em 95% dos casos". E as dúvidas insistem. É possível determinar quando surgirá a necessidade de criar uma lei? E os manuais? Irão substituir os advogados na descodificação da linguagem jurídica?
Um pacote atraente e perigoso
"Um produto com uma embalagem muito atraente, mas com conteúdo extremamente duvidoso". É desta forma que Franclim Ferreira, advogado e presidente da direcção nacional da Associação Nacional Justiça para Todos, se refere ao Simplegis.
Na sua opinião, o programa oferece uma única vantagem - "a de o Governo passar a disponibilizar online toda a legislação existente em vigor, de forma consolidada, facto que irá ajudar os agentes da Justiça". Tudo o resto está "desfasado da realidade social e legal".
São críticas severas, partilhadas por outros intervenientes da vida jurídica portuguesa. Mas nem todos avaliam de forma negativa a iniciativa governamental. Para Ana Tapadinhas, coordenadora do departamento jurídico da DECO - Associação de Defesa do Consumidor, "tudo o que sirva para informar melhor o consumidor e o cidadão é positivo, na medida em que um consumidor informado é um consumidor responsável". A consolidação das leis, destaca, "irá promover o esclarecimento".
Com mais precaução, o juiz Eurico Reis prefere "esperar que a proposta seja concretizada para ver se tal resposta simples resulta". O juiz, que é também membro da direcção da Associação para o Progresso do Direito, não é contra, à partida, mas frisa que o Simplegis "nunca poderá ser vinculativo".
Neste momento, Eurico Reis não avalia o avanço do Governo como uma intromissão do Poder Político no Poder Judicial, como já o considerou, ao JN, o bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho e Pinto. Mas alerta, desde já, que, "caso tentem avançar com uma tentativa de intromissão de poderes - coitados - não têm hipótese. Isto nunca será vinculativo. Os juízes nunca o iriam permitir".
Precisamente: "É mais fácil mexer nos professores do que no mundo da lei" - afirma o sociólogo Albertino Gonçalves. "Quando acontece algo contra a classe, o aparelho reage logo", acrescenta. Como um corpo.
Numa breve análise do sistema jurídico português, o professor universitário do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho explica que se trata de "um corpo muito antigo, com ritualizações de práticas muito enraizadas".
Antigo e sustentado pela crença, um alicerce quase inultrapassável. "A Justiça funciona com base na sua autoridade. Reconhecemos a um juiz um estatuto e um poder e acreditamos, temos fé, que tudo irá correr bem", declara Albertino Gonçalves.
Manuais de instruções são suspeitos
Franclim Ferreira contra-ataca: "O Simplegis é muito perigoso". O advogado do Porto defende que, tal como os médicos têm uma linguagem técnica, também os juristas têm habilitações específicas. Aliás, "nós, juristas, logo no primeiro ano de faculdade aprendemos a interpretar leis, que devem ser claras e com o mínimo de ambiguidade". Nesse sentido, o advogado considera que "os manuais de leis são muito suspeitos e acabarão por promover mais litígios. As pessoas vão pensar que não precisam de advogados". Em suma, para Franclim Ferreira, "o cidadão comum não tem que saber interpretar leis, tal como não tem que saber o detalhe técnico de uma cirurgia médica".
Manuais "suspeitos"? Talvez "optimistas", considera, por sua vez, o sociólogo Albertino Gonçalves, que não entende como pode a linguagem jurídica ser simplificada. Por isso, caracteriza esta medida como "simbólica: não estou a ver um português, seja um empresário ou um cidadão normal, a tirar proveito destes manuais".
Quando um cidadão precisa de esclarecimento jurídico, procura um advogado, membro da classe que detém esse "monopólio", admite o juiz Eurico Reis. O magistrado lembra, inclusivamente, que existem regras que condenam a procuradoria ilícita e manifesta compreensão para com o protesto da classe. Não deixa, contudo, de aconselhar a que se mantenha num "tom sereno e civilizado", sob pena de haver alguém que diga 'então não querem que a gente perceba?'
A questão volta-se, assim, para os autores dos manuais, que "devem ter a humildade de perceber que não são textos vinculativos e que não devem usurpar competências dos profissionais certificados para interpretar a lei. Nesse sentido, aceito que a Ordem dos Advogados seja a entidade certificadora" - explica Eurico Reis.
Menos lixo legislativo
Não tão "optimista" como o Simplegis, o sociólogo da Universidade do Minho crê que "o funcionamento lento da Justiça, que tantas despesas traz aos portugueses, esse sim, merecia um programa". No mesmo sentido, opina Franclim Ferreira, para quem o Simplegis "realça que o Governo não percebe qual é o verdadeiro problema da Justiça em Portugal. Tenho dúvidas de que tenha sido feito por juristas. Está demasiado desfasado da realidade social e legal. Sublinho: revela ignorância do sistema jurídico" - afirma o advogado do Porto. Ainda assim, Albertino Gonçalves dá as boas-vindas à eliminação do "lixo legislativo" e dos "erros de 95% das leis". Mas, ao mesmo tempo, "é assustador que mais de 5% das leis tenham erros. Se muitas empresas tivessem essa margem de erro, já teriam ido à falência".