Monumental e brilhante, o último romance de Pedro Rosa Mendes, Peregrinação de Enmanuel Jhesus, interroga a relação histórica e geográfica de Portugal com o arquipélago Malaio e Timor-Leste, onde esteve como delegado da Agência Lusa.
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No romance, cruzam-se oito perspectivas (mais uma) sobre a desventura de um jovem indonésio que vive torturado perante as múltiplas identidades que lhe são exigidas e que vai descobrindo dentro de si enquanto percorre aquele território. Numa peregrinação às origens. Paradigma da grande literatura, foi o pretexto para interrogar o autor, de férias no Douro, sobre Timor, jornalismo e a tecnologia.
Alor, o protagonista do romance, é um arquitecto indonésio de 22 anos, instrumento para recuperar o esplendor de um reino javanês, a justificação da ONU enquanto entidade instauradora de nações, o messias capaz de resgatar o povo timorense e guiá-lo à glória, o universalista que traz, no corpo, a cartografia que simboliza a glória de Portugal… Quem é Alor, afinal?
É tudo isso. É o messias de quase todos, o que será a sua desgraça, como acontece a todos os messias. Alor é obrigado, tal como o povo timorense, a escolher entre a História e a Geografia. Assim, o que Alor é situa-se num duplo plano: o que julga ser, e aquilo que pode ser em termos de projecto - político, espiritual, messiânico, mas também como homem, no caso de Wallacea [a princesa da Casa de Wehal] -; Alor é este Jhesus, este Enmanuel curvado face à obrigação de ser tudo isto. E este dilema, este conflito identitário, continua a ser a questão fundamental do romance: qual é a identidade mais verdadeira - a do sangue? A da cultura? Ou a de um código de valores? Também por isso é importante que Alor seja arquitecto , que persegue um sentido literal da arquitectura como confluência, obrigando-o a estudar os vários tipos de casa tradicional de Timor e as várias linhas antropológicas do território. É também uma homenagem a Ruy Cinatti, autor de um livro belíssimo sobre a arquitectura popular timorense.
A obra é prolixa em metafóras. Pode rever-se, em figuras locais, o líder preso a uma rocha?
Não. O facto de ter reflectido e tratado Timor tão intensamente, como jornalista, permitiu-me, quando sai do país, estar completamente livre para tratá-lo com outra linguagem e como alguém que reclama olhar para Timor fora da grelha de análise - redutora, sectária e intolerante por não admitir outras e as combater violentamente - dos militantes da causa timorense, que tende a reduzir Timor aos rostos da resistência. Este é um romance que sai do espartilho da leitura de Timor pela causa, cujos prosélitos tornaram os timorenses reféns dela. Para um local, começar e acabar um livro com uma cabeça cortada é uma referência a Nicolau Lobato [herói nacional morto pelos indonésios em 1975]; todavia, a personagem do livro não tem referente real - o que tinha a dizer sobre Timor real já o fiz como jornalista.
O romance mostra um timorense indolente, sanguinário, analfabeto, ultra-católico, tribal e dado à extorsão. É este o timorense actual?
O que está no livro não é o Timor segundo Pedro Rosa Mendes - se o fosse, teria só uma voz, e tem mais. Mas a voz dominante é a de Dalboekerk, oficial indonésio, e é a sua perspectiva sobre os timorenses que está ali. Ora, não seria credível pôr a falar um coronel Kurtz [do filme Apocalypse Now] indonésio como o padre Melícias. Aliás, o livro tem categorizações duras porque correspondem ao que foi o pensamento indonésio sobre Timor. Mas esse retrato do timorense resulta também da soma de cenas do livro, algumas violentíssimas; mas, se falar com o timorense comum, ele reflecte desapaixonadamente sobre os ritos, e a violência que os envolve, sem qualquer valoração moral. Logo, há uma dureza de que não fujo, mas há também honestidade, ao não tentar impor um quadro moral. O romance concede liberdade moral aos personagens até ao limite, e Dalboekerk é o espelho do topo da hierarquia indonésia, que justifica o massacre, o extermínio e o projecto de integração com argumentos quase filosóficos.
Há uma crítica às ONG em Timor, cujos funcionários são perdulários e inconsequentes. As ONG desenvolvem ali algum trabalho sólido?
O personagem brasileiro da ONG, na sua crítica e reflexão, deriva muito de um judeu carioca que conheci em Díli, com o qual tive sessões de brainstorming para estruturar o personagem. Interessava-me reflectir Timor a partir da criação do Estado de Israel e do seu messianismo, por ser um Estado cuja legitimidade é exclusivamente moral, tal como o nascimento da República de Timor-Leste - se tal personagem não fosse carioca, seria sempre judeu. Quanto às ONG, um dos problemas de Timor é a debilidade da sociedade civil, e há poucas ONG locais com trabalho sustentável. São fracas. A causa timorense, a resistência, legou uma sociedade civil débil - não há nada fora da esfera dos veteranos.
Na simulação das conversações entre Jaime Gama e Ali Alatas, este mostra-se mais astuto e preparado, surpreendendo o português com erudição vasta. Um diálogo assim é imaginado ou funda-se na realidade?
É inteiramente imaginado. Se tivesse acesso ao que se passou na Cimeira de Nova Iorque (1999), a ficção seria construída à volta de um documento histórico. Não é o caso. O que está no livro é um jogo intelectual entre pai e filho a tentarem ficcionar o incógnito. É, pois, duplamente ficcional - integra um romance e é o momento em que cada personagem se assume pela esgrima retórica. A erudição devo-a a Luís Filipe Tomás, sábio historiador orientalista que foi fundamental: quando a folha estava em branco, uma das certezas que tinha era a que o personagem principal devia falar como Tomás - erudito, mas com elevado nível poético e registo extremamente exacto, de enorme riqueza lexical e estilística.
Timor-Leste é um Estado falhado?
Não. É uma democracia vibrante, é o país, se comparado com a maioria dos PALOP, em que a Imprensa goza de liberdade total, onde não há violência política, e que, perante um ataque ao presidente da República, não só evitou o caos como manteve um quadro institucional. Portanto, um Estado que funciona. Timor não é um Estado falhado - é pior. Porque, ao mesmo tempo que a renovação política se fez nas urnas e pacificamente, este colectivo consegue sabotar a própria sobrevivência. Timor trabalha quotidianamente a sua inviabilidade económica, demográfica, ecológica… Aquilo que mais me chocou ali foi o desrespeito do povo em relação ao próprio projecto de República. Não há, da maioria do povo, esforço nem participação em relação à paz, que é comprada. Isto é chocante porque contraria o sofrimento que antecedeu a independência, em que um terço do povo pagou com a vida a ocupação. Hoje, há um desrespeito quotidiano dessa memória e a demissão em relação ao que os próprios disseram querer com a independência.
O livro convoca uma série de disciplinas, desde apontamentos histórico-políticos, informações sobre a fauna e flora, usos e costumes locais, noções de guerrilha, de estratégia e até de artes marciais, mitos e ritos locais, cartografia antiga, noções de geologia… quanto tempo leva a investigação para uma obra assim?
Levei muito a sério o lugar e a função quando a Agência Lusa me convidou para ser delegado em Timor e tentei, no limite do tempo disponível, ler de tudo sobre o país - relatórios, livros e notícias das mais diversas áreas … Essa paleta toda resulta do que fui lendo e sabendo dos meus interlocutores privilegiados. Foi importante ter um engenheiro agrónomo como contacto, por exemplo - Timor é uma realidade muito agrícola e florestal. Assim, essa paleta tem a ver com a exposição no terreno, a leitura e os interlocutores. Depois de sair de lá, houve um trabalho colossal de leitura paralelo à construção do romance. Houve autores que li, ou reli, durante a escrita, mas que foram importantes na fase inicial para definir coordenadas - li, por exemplo, duas biografias de Jesus. O maior gozo do livro é a peregrinação que precede a que está no romance...
Os seus romances têm cenários concretos - o mapa cor-de-rosa em África (Baía dos Tigres), maldição do petróleo em São Tomé (Lenin Oil) e agora Timor. São romances puros, de ficção, ou formas de jornalismo literário?
Provavelmente, essa carapuça serviria à Baía dos Tigres, mas Peregrinação é ficção absoluta, e da mais alucinada, como a cena de sexo entre Alor e Wallacea. Na Peregrinação nada é pessoal - não vivi nada daquilo. Nesse sentido, há uma grande distância da Baía dos Tigres.
O jornalismo é um sub-género da literatura, ou são coisas distintas? Qual é a fronteira?
O jornalismo é um código de honestidade com o leitor. Essa é a linha intolerante de separação entre o jornalismo e o resto - para mim, o New Journalism é no journalism. Mas o jornalismo pode, e merece, sem prejuízo para a eficácia da informação, ter dignidade literária. Não misturo as duas coisas, mas pode haver uma linguagem literária que sirva o código do jornalismo.
Em que medida é que as novas tecnologias, como os e-reader, poderão modificar a forma e o conteúdo da nova literatura?
Dando mais liberdade. Quando surgiram o DVD e a câmara digital, os puristas decretaram a morte do cinema. Não morreu, e grandes cineastas dizem que o DVD permite, até, multiplicar o olhar sobre a mesma matriz, o filme na versão director's cut. Com o e-reader, será o mesmo: acrescenta patamares de leitura, ou de fuga, a um director's cut literário. Aliás, a publicação de um romance em papel é a forma mais limitada, mais pobre, de o fazer. Agrada-me a ideia que, no formato electrónico, o leitor de Peregrinação possa confrontar, por exemplo, a ficção da cimeira entre Jaime Gama e Ali Alatas com a verdade documental dela. Não tenho qualquer receio; pelo contrário, tenho uma expectativa muito positiva. O e-reader é, afinal, um multiplicador de códigos de leitura.
África, Timor… Já tem lugar para o próximo livro? Será na Europa, visto viver em Paris?
Não, não. Será africano, num país sem nome algures na costa ocidental. É um projecto que estava quase concluído, no qual investi muito tempo de pesquisa, e que agora terei de retomar.