Afinal, mulheres já trabalham à borla há duas semanas e meia. Anteprojeto laboral traz "risco de recuo"

Comparados os rendimentos totais - com subsídios, prémios e apoios - diferença salarial entre mulheres e homens cresce quase 20 dias, em 2023
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Se forem contabilizadas todas as parcelas da remuneração, as estatísticas indicam que mulheres estariam a trabalhar gratuitamente 64 dias por ano - quando comparadas com os homens - e não 46, como indicam os estudos oficiais que marcam, para este ano, o Dia da Igualdade Salarial para 16 de novembro. Investigadora Sara Falcão Casaca lembra que se não fosse o nível de formação educativa das mulheres, diferencial face aos homens seria ainda mais acentuado e alerta para o "risco de recuo" de a nova proposta de pacote laboral "aumentar o 'gap' entre géneros", que até estava a ser encurtado.
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As mulheres portuguesas estão a "trabalhar de forma gratuita" desde há mais de duas semanas, 29 de outubro, e não a partir de domingo, 16 de novembro. Ambas datas refletem a estatística que procura pôr em evidência a diferença de remunerações entre mulheres e homens em território nacional e pretende explicar que o sexo feminino, tendo rendimentos mais baixos do que os congéneres masculinos, já está a laborar sem auferir há 64 dias. As jornadas de "trabalho grátis" delas face aos homens é apenas uma forma de materializar a diferença de mais de 17% que ainda existe e que até estava a ser reduzida. Contudo, face às novas medidas que estão em debate ao abrigo do anteprojeto do pacote laboral, investigadora Sara Falcão Casaca mostra preocupação e fala em "risco de recuo". Mas já lá vamos.
Segundo dados avançados esta sexta-feira, 14 de novembro, pelo Observatório Género, Trabalho e Poder, do ISEG - Lisbon School of Economics and Management, as mulheres trouxeram em média para casa, fruto do seu trabalho, em 2023, menos 17,5% do que os homens por trabalho e valor iguais. Indicadores que mostram que o diferencial (gap) é muito mais acentuado do que aquele que é apontado oficialmente, que estabelece 12,5%. A discrepância de mais de 5% entre as duas entidades deve-se ao facto de o segundo valor refletir apenas remuneração-base, deixando de fora subsídios à produtividade, prémios, apoios e outros, e que também é dinheiro que - mais homens do que mulheres - levam para casa ao fim do mês.
"As metodologias são distintas, mas chamam à atenção para a necessidade de assinalar o diferencial salarial que se mantém elevado, ainda que tenha vindo a declinar", afirma Sara Falcão Casaca. A investigadora e responsável pelo estudo do Observatório refere que é imperativo "perceber quais os fatores estruturais que estão na base destas desigualdades remuneratórias tão elevadas".
Investigadora Sara Falcão Casaca teme que medidas de novo pacote laboral introduza "recuo" para as mulheres Foto: ISEG
Estes cálculos ponderados começaram a ser feitos em 2018, aquando da aprovação da lei, e os resultados mostram que o gap tem vindo a declinar, "sendo a queda mais acentuada em 2022 e 2023. "Gosto de colocar como hipótese teórica de que pode estar aqui um efeito já da implementação da lei 60/2018" considera Sara Falcão Casaca. A prosseguir por aqui, "num cenário otimista, precisamos de mais anos para verificar se esta redução é consolidada com o tempo", acrescenta a investigadora.
Contudo, a especialista teme que as novas propostas que estão em debate no pacote laboral, se aprovadas, invertam o caminho até agora feito. "Há o risco de recuo", revela. "Não temos qualquer incentivo à igualdade, o que é estranho, e temos aqui várias ameaças que podem agravar as desigualdades laborais e em desfavor das mulheres", analisa.
Se por um lado, "sempre que se fragiliza a relação laboral, as mulheres são sempre indiretamente as mais afetadas", o caso agudiza-se nas matérias em concreto. "Aquelas que mais diretamente podem afetar as mulheres e que estou a analisar com particular reserva e preocupação é a possibilidade de os contratos de duração limitada poderem ser mais longos porque isso é prolongar a precariedade laboral nas trajetórias de vidas", avisa a investigadora. Uma realidade que poderá provocar um efeito em cadeia e que passa por, durante mais tempo, "transitar entre empregos de baixa remuneração, sem oportunidade de mobilidade, formação, progressão" e aumento, justifica.
Medidas arriscam atirar mulheres para casa
Quanto à proposta de remover a possibilidade de horário flexíveis para mães e pais com crianças até 12 anos, a pesquisadora considera que "o regime de funcionamento das empresas deva ser assegurado", mas as "necessidades de mulheres e homens com responsabilidades familiares" também. "Se a conciliação não for devidamente acautelada neste anteprojeto de forma a equilibrar empresas e trabalhadores, podem existir consequências bastante graves, sobretudo para as mulheres", que são tradicionalmente quem mais solicita este regime por terem, ainda desproporcionalmente sobre elas, a esfera do cuidado". Sara Falcão Casaca alerta: "Quem tem necessidades imperiosas do cuidado tende a abandonar a atividade profissional", ficando sem rendimentos. " "O que deveríamos estar a debater era a partilha efetiva entre mulheres e homens, em que elas pediam à entidade empregadora por um período e depois os homens fariam o mesmo por outro. "Nada nesta proposta [do governo] reflete isso"
Preocupações que se alargam ao "recuo na proposta de licença parental inicial". "Ao abrigo da Agenda do Trabalho Digno, tinha sido introduzida a alteração de o pai poder ficar 60 dias de licença a 90% da remuneração de referência, por isso, num país de magros rendimentos e no qual muitas famílias não podem sequer equacionar uma perda de 10%, o que se devia estar a propor eram os 60 dias pagos a 100% e não esta possibilidade de haver a partilha", considera a investigadora. A ideia do que é facultativo - e não efetivo - associada à partilha de responsabilidades arrisca acentuar discrepâncias num país que ainda não suplantou "estereótipos de género e que coloca as mulheres como principais cuidadoras".
Por fim, a pesquisadora lamenta "o clima de suspeição lançado sobre as mulheres com a revisão da lei da amamentação". O ideal, sugere Sara Falcão Casaca, era "mexer neta proposta e prever os direitos de mães e pais com crianças até dois anos, com períodos alternados, seria uma medida com impacto bastante positivo".
Educação encurtou distância,
maternidade e trabalho não pago acentuam diferença
De volta o estudo do Observatório Género, Trabalho e Poder, Sara Falcão Casaca chama à atenção para o papel da educação no encurtamento de distâncias entre géneros. "Se não fossem mais escolarizadas, a disparidade subia mais 5%", para os 22,7%, indica a investigadora, que lembra que "a educação ajuda a minimizar o impacto, mas não o elimina". Contudo, as profissões de género ainda mantém bem viva a sua marca, com o sexo feminino ainda muito presente em ramos de atividade e profissões com remunerações mais baixas.
Um estudo que, recorde-se, não inclui o trabalho não pago e que acentuaria ainda mais as diferenças de género. "O facto de as mulheres assegurarem partes das responsabilidades agrava o diferencial remuneratório e se o querermos reduzir, temos de exigir transparência remuneraria às entidades empregadoras e uma organização social mais justa no seu todo, com divisão das tarefas domésticas e cuidado familiar", afirma Sara Falcão Casaca.
Ter filhos continua a ser um fator que pesa desproporcionalmente sobre as mulheres e que agudiza diferenças. "Sabemos que a diferença na entrada no mercado trabalho é de 5%,mas depois o gap acentua-se nos períodos entre os 25-34 e os 35-49 anos e já não volta atrás", lembra a pesquisadora, que deseja que a "transposição da diretiva europeia possa ir mais além e pensar os indicadores necessários e a forma mais objetiva de diferencial que nos permita perceber a maternidade e paternidade nas progressões das carreiras e variações".

