A população de Vagos, Mira e Cantanhede está a tentar manter as casas gandaresas vivas e avança com projetos que mostram o seu potencial e versatilidade.
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Na aldeia do Boco, no concelho de Vagos, Vítor Martins quer recuperar a casa centenária da bisavó da esposa para um Alojamento Local. "É um imóvel centenário, com valor sentimental. Entendemos que devemos fazer o possível para preservar este tipo de património", conta, ao JN.
No Seixo de Mira, Calisto Coquim doou à filha a casa que herdou dos seus avós. Espera criar um novo negócio com duas valências - escola de ballet e chocolataria - e está a tentar conseguir financiamento do Empreende XXI.
Mas há muitas outras histórias. Como as três que contamos a seguir e que mostram como as casas gandaresas podem continuar a ser lar que guarda memórias, sede de associações que promovem a terra ou albergar negócios que resgatam a doçaria tradicional.
Manteve casa onde cresceu
Quando a professora Isabel Plácido, 64 anos, herdou a casa dos pais, construída em 1937 na localidade de Sardão, município de Cantanhede, não se desfez dela. "A pressão da família era para demolir grande parte da casa e transforma-la, mas eu consegui não ser influenciada e quis manter o máximo possível do que existia".
A casa encerra "muita história, por isso faço questão de a preservar", revela Isabel.
O pátio continua a ter "toda a importância", sendo o espaço onde muitas vezes Isabel recebe visitas e família. Quando está bom tempo, é o lugar "onde se come, se descansa, se alivia a cabeça".
No exterior, mantém-se uma casa de banho antiga, poço, eira. A adega, abegoaria e currais foram adaptados a novos usos e as antigas pias do gado são agora floreiras, mas no portão mantém-se a tranca de madeira.
Outras pessoas "não valorizavam [a casa gandaresa], talvez porque tiveram outras vivências. Eu sempre fui sensível às histórias da Gândara, das famílias, e por isso é que nunca a abandonei".
Procuram fundos para negócio de doces
Os vidros partidos e ervas no pátio denunciam o estado de degradação, mas na cabeça das irmãs Sofia e Tânia Oliveira e da cunhada Ana Milheiro, o potencial da casa gandaresa que compraram em Carapelhos, Mira, para instalarem um negócio de doces tradicionais, é enorme. A entrada principal será pelo portão e, no pátio e nos anexos, ficarão as mesas. O poço é para manter e uma antiga carroça será incorporada no design. Na casa será instalada a zona de confeção.
O gosto pela cultura da Gândara vem de longe. Os avôs de Sofia e Tânia tinham uma casa gandaresa a poucos metros daquela e as jovens cedo se interessaram pelos costumes e tradições da região, em particular pela doçaria. A tal ponto, que as irmãs e a cunhada deixaram para trás os empregos (têm formação na área da engenheira alimentar, design gráfico e marketing), para criarem a confeitaria artesanal Trinca Fatias.
A casa gandaresa está comprada e o "projeto está na Câmara", mas os custos de adaptação são elevados e as jovens não conseguem fundos. Por isso, e para manterem o negócio viável, arrendaram uma casa de chá noutro local e abriram ao público há poucas semanas.
Mas não desistem de recuperar a casa gandaresa, garantem. "Queremos recuperar o que se está a perder, o património, as tradições e métodos de confeção artesanais", afiança Sofia.
Confraria investiu em sede que preserva identidade
A Confraria dos Sabores da Abóbora mudou, em 2021, para uma casa gandaresa que comprou em Soza, Vagos, esgotando as poupanças. "Temos de preservar a nossa identidade. Agarramos esta oportunidade para preservar este património, porque a tendência é as casas perderem-se cada vez mais", explica a Chanceler-Mor, Fátima Rito, sentada na cozinha ao lado de Fátima Almeida, Rosa Maria Vieira e Graça Almeida.
A intenção é manter "ao máximo" os traços originais e as "portas, janelas, teto e pisos são os mesmos". Mas a confraria está a fazer algumas alterações para tornar o espaço mais funcional. "Nos currais ficarão casas de banho, no curral da vaca fizemos a cozinha do forno e na adega vamos criar outra cozinha, que tem de obedecer a regras específicas porque é para fazer o doce de abóbora que está certificado", descreve Fátima Rito, admitindo que espera conseguir fundos do Programa de Desenvolvimento Rural para esta etapa.
Em janeiro a confraria realizou ali um capítulo, tendo recebido 270 pessoas de 40 confrarias de norte a sul de Portugal e três de Espanha, que ficaram a conhecer a casa e a gastronomia da região. "Muita gente não sabia o que era a casa gandaresa", diz Fátima Rito.
* Trabalho realizado no âmbito do projeto "Gândara - Tour Sensations", financiado pela Linha de Apoio à Sustentabilidade - Turismo de Portugal