Faltam milhares de trabalhadores em Portugal. Muitos emigraram à procura de ordenados mais atrativos. Outros aproveitam apoios sociais e não procuram emprego.
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Muitos dos setores de atividade em Portugal debatem-se com falta de pessoas para trabalhar. Mas a construção civil, a restauração e a hotelaria estarão a ser os mais penalizados. Salários e horários pouco atrativos, emigração, falta de qualificações e subsídios sociais que não incentivam a procura de trabalho são algumas das justificações. A escassez de recursos humanos pode ser um travão à recuperação da economia.
Só no setor da construção "está identificada a falta de cerca de 70 mil trabalhadores", de acordo com Manuel Reis Campos, presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN). O presidente da Associação Nacional dos Restaurantes (Pro.Var), Daniel Serra, estabelece a necessidade "entre 20 mil e 25 mil", enquanto o presidente da Associação da Hotelaria de Portugal, Raul Martins, estima a carência de "15 mil". A míngua estende-se à pesca, agricultura e mobiliário entre muitos outros setores de atividade.
A escassez de mão de obra está a obrigar as empresas a "pagarem mais, até para concorrerem umas com as outras", o que segundo João Vieira Lopes, presidente da Confederação do Comércio e Serviços, causa uma "pressão salarial bastante assimétrica sobre os setores". É que "nem todas conseguem repercutir o acréscimo de custos nos produtos e serviços que prestam e acabam por esmagar excessivamente as margens de lucro".
Problema "muito grave"
Para Ana Jacinto, secretária-geral da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), o problema da falta de mão de obra "não é novo" e "agravou-se no período pós-pandemia". Neste momento, "é a principal dificuldade dos restaurantes" e "é muito grave", acrescenta o presidente da Pro.Var, porque com a escassez de mão de obra, "não têm a atividade normalizada" e alguns "dão prejuízo".
Ana Jacinto enfatiza que, "com a diminuição do funcionamento e, até, encerramento de empresas", devido à covid-19, as pessoas "deslocaram-se para outras atividades" e agora "é mais difícil retornarem a empregos que exijam horários para além das horas ditas normais e trabalhar aos fins de semana e feriados".
Daniel Serra aduz que "muitos dos que foram despedidos continuam a aproveitar o subsídio de desemprego enquanto dura". Razão pela qual a secretária-geral da AHRESP defende a criação de um "instrumento financeiro de incentivo para o regresso ao mercado de trabalho", bem como a "revisão da forma como são atribuídos os apoios sociais" e da quantidade de "ofertas de emprego que, sistematicamente, permanecem por preencher".
Desencorajados
Ana Jacinto recupera dados do Banco de Portugal que revelam que, no início da pandemia, "o número de "desencorajados", ou seja, aqueles indivíduos sem emprego que, embora estivessem disponíveis para trabalhar, não procuraram ativamente emprego, aumentou em cerca de 150 mil, um aumento sem precedentes em termos de magnitude e rapidez". No segundo trimestre de 2021 "observou-se igualmente um aumento da percentagem de novos "desencorajados" provenientes do comércio e do alojamento e restauração".
Os dados do último inquérito realizado pela AHRESP, relativos a setembro de 2021, revelam que "32% das empresas de alojamento e 67% de restauração, já sentiram necessidade de contratar novos colaboradores este ano". Contudo, destas empresas, "78% de alojamento e 91% da restauração, manifestaram ter tido dificuldades no recrutamento". Acrescenta que "houve mesmo empresas (31% do alojamento e 56% da restauração), que tiveram de adiar investimentos no negócio por terem dificuldades em contratar recursos humanos". "Uma situação que não deveria acontecer", enfatiza Ana Jacinto.
Um exemplo das dificuldades atuais é o restaurante Solar dos Presuntos, em Lisboa. Tem 510 lugares, mas só funcionam 300. O proprietário, Pedro Cardoso, prefere ter os restantes fechados a pôr em causa a qualidade do serviço. Tem 74 colaboradores e "precisava de mais 20". Diz que não os consegue porque "o sistema paga às pessoas para não trabalhar". "Pagar impostos, sim, mas para coisas que são mesmo essenciais, como a saúde e a educação, e não para sustentar quem não quer fazer nada".
Há dias, Francisco Figueiredo, da FESAHT - Federação dos Sindicatos de Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal, dizia aos jornalistas que "dados oficiais, e a informação que circula na comunicação social, aponta que 80% dos trabalhadores dos hotéis e demais estabelecimentos de alojamento recebem apenas o salário mínimo nacional e trabalham ao fim de semana, aos feriados". O responsável salienta que se trata de "um trabalho muito penoso e, por isso, é natural que muitos que foram empurrados violentamente nesse período da pandemia não queiram agora voltar".
Pagar melhor aos trabalhadores
Albano Ribeiro, presidente do Sindicato de Construção Civil do Norte, entende que a solução passa por "pagar melhor aos trabalhadores" para evitar que emigrem à procura de ordenados mais atrativos. Apresenta alguns exemplos: "um carpinteiro em Portugal tem um salário mensal de 720 euros e em Espanha ganha 2000. Um engenheiro civil ganha cá 960 euros por mês, enquanto em Espanha aufere 4500". Por isto é que, "nos últimos seis anos, saíram do país 300 mil trabalhadores da construção".
David Sanglas, líder de negócios internacionais da Eurofirms, uma empresa nacional de recursos humanos, é perentório: "Portugal não é, ao dia de hoje, um país que reúna as condições essenciais para atrair e reter talento". Justifica, por exemplo, com "salários baixos e alojamento com rendas muito elevadas". A médio prazo, sublinha, "pode agravar ainda mais a rentabilidade nas empresas e, consequentemente, a economia do país".
O presidente da AICCOPN, Manuel Reis Campos, diz que as consequências mais imediatas da falta de mão de obra são "dificuldades e custos acrescidos para a atividade operacional das empresas" de construção. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, o índice de custos de construção de habitação nova registou, em setembro, um "aumento de 7,1%, com variação de 8,9% na componente relativa aos materiais e 4,6% na componente relativa à mão de obra".
No setor da construção, Manuel Reis Campos prefere indicar como prioridade o "apoio a capacitação das empresas e a reorientação da formação profissional, tirando partido dos centros de formação de excelência do setor". De acordo com o presidente da AICCOPN, "as empresas apontam a falta de mão de obra qualificada como o principal constrangimento à atividade". Um "problema estrutural", que, vinca, "resulta, em grande medida, de um desvirtuamento da formação profissional, que se foi afastando cada vez mais do mercado de trabalho, subjugada a uma política de educação alheada das efetivas necessidades das empresas e incapaz de antecipar as tendências de futuro".
Reis Campos nota ainda que, atualmente, "existe um desajustamento entre a procura e a oferta de trabalho que tem de ser ultrapassado", pois, na sua opinião, "não faz qualquer sentido coexistirem fenómenos como o desemprego na economia e a falta de recursos humanos nas empresas".
Criar melhor emprego
Admitindo que "há setores, como a restauração coletiva, empresas de limpeza e de segurança, onde, praticamente, a oferta de emprego que existe é precária", o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, evidencia que "há necessidade de encontrar novas formas de regular o trabalho". O objetivo, refere, é "permitir às pessoas ter vontade de encontrar no nosso país a possibilidade de aqui realizarem os seus projetos de vida". Para se projetar como "um país de futuro a longo prazo", Portugal tem de "criar melhor emprego para toda a gente, porque senão as pessoas vão-se embora".
O presidente da (Pro.Var), Daniel Serra, assume essa premência, mas, "infelizmente, a restauração não tem conseguido atualizar os salários tanto como é necessário para atrair pessoas, porque existe uma pressão muito grande, nomeadamente nos preços das matérias-primas e da energia".
O porta-voz da Eurofirms entende que, nesta fase pós-pandemia, para além dos ordenados, os trabalhadores começaram a preocupar-se mais "com a segurança e com a conciliação entre a vida pessoal e profissional". Os jovens, destaca, "valorizam empresas responsáveis ao nível social e sustentáveis ao nível ambiental". Por isso, procuram trabalhar nas que tenham os mesmos valores em que acreditam".
David Sanglas advoga que o futuro do trabalho passa por "incorporar novas tendências", tais como "jornadas laborais híbridas e novas formas de contratação que permitam diversificar a oferta e atrair um maior número de pessoas". Insiste que "as empresas mais conservadoras não conseguirão atrair bons profissionais se continuarem a ignorar a transformação que a pandemia trouxe ao mundo do trabalho e à sociedade".
O problema de falta mão de obra não é exclusivo português. Reino Unido, Alemanha, França, Itália e EUA também sofrem. Tal como por cá, construção civil, hotelaria e restauração têm grande carência de trabalhadores.
Setores
Construção civil: aliciam operários à porta das obras
Armindo Rodrigues e Lourenço Pascoal chegaram há cerca de um ano de Angola para trabalhar na construtora JC Group, em Braga. São apenas dois imigrantes entre dezenas que a empresa já contratou para suprir a falta de mão de obra. Com salários cada vez mais altos, os responsáveis entendem que a dureza do trabalho é mesmo o que afasta os jovens.
"A juventude agora não quer seguir esta profissão. No que toca a especialidades mais esforçadas, como pedreiros ou calceteiros, ainda menos. Daqui a 10 ou 15 anos vai ser desastroso, porque os bons profissionais estão com idades médias entre os 50 e 65 anos", lamenta Armando Dias, um dos diretores de obra da JC Group, que conta com perto de 60 operários, mas precisaria do dobro para não ter de recorrer com tanta frequência a subempreiteiros.
A disputa pela mão de obra é tão grande que, conta Nélson Borges, outro diretor de obra, "a concorrência vai bater à porta das obras para aliciar os trabalhadores", nomeadamente, os imigrantes. "E sem aviso prévio, alguns fogem para outro lado. Pessoas com quem tivemos um custo imenso para os poder trazer do estrangeiro", conclui Armando Dias.
Setor eólico: não é questão salarial, é mesmo escassez
O grupo alemão do setor eólico Enercon, atualmente com duas fábricas instaladas em parques empresariais de Viana do Castelo, debate-se com dificuldades no recrutamento de mão de obra, qualificada e não qualificada. As principais necessidades são supridas com contratação de estrangeiros através de empresas de trabalho temporário.
Inês Marques, técnica de Recursos Humanos, Recrutamento e Seleção da empresa, há 14 anos, afirma que "as dificuldades de recrutamento de mão de obra nacional começaram em 2017". "Nessa altura houve um "boom" de entrada de brasileiros no país e isso refletiu-se na nossa empresa. Depois a partir de 2019 as dificuldades tornaram-se maiores e nem com brasileiros se resolviam", refere. Adianta que, entre a fabrica de pás para torres eólicas instalada na praia Norte e a de geradores e mecatrónica que funciona em Lanheses, o grupo emprega em contínuo "entre 900 e mil trabalhadores de cinco nacionalidades". A maioria são portugueses, oriundos da região de Viana do Castelo e arredores, a seguir brasileiros e indianos. Quanto às razões desta situação, Inês Marques garante: "Aqui não se trata de uma questão salarial. É mesmo uma questão de escassez de mão de obra".
Pescas: indonésios são mais que os portugueses
Os armadores dizem que foram eles quem salvou a pesca artesanal. São indonésios. Vivem nas Caxinas, em Vila do Conde, entre a maior comunidade piscatória do país. São já 300, quase todos entre os 20 e os 30 anos. Praticamente não há barco na Póvoa de Varzim e em Vila do Conde que não os tenha e muitos têm já mais indonésios do que portugueses. Todos os dias, chegam à Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar novos pedidos.
Ali, há uma década, havia cerca de três mil pescadores. Hoje, são menos, bem menos. Os filhos já não querem seguir a arte dos pais. A pesca é dura, ceifa vidas, as quotas são cada vez mais "magras", o salário, a cada ano, mais incerto e menos atrativo. Uns emigram para trabalhar na pesca em Espanha ou na França, outros trocam o mar pelos camiões de longo curso.
Em 2018, a falta de mão de obra obrigou muitos barcos a parar. A "Pró-Maior" avançou com a parceria com a Indonésia e os primeiros 200 homens chegaram nesse verão. Lá ganhavam 100 ou 150 euros. Cá ganham 713 euros, fazem descontos, têm férias, casa, comida e viagens a casa pagas. Quem os tem a bordo diz que são "esforçados", "trabalhadores", "desenrascados" e "não bebem [álcool]". Eles só querem juntar dinheiro para dar uma vida melhor à família que deixaram do outro lado do Mundo.
Agricultura: na castanha até os mais velhos ajudam
Falta mão de obra nos soutos transmontanos para apanhar tanta castanha. A área de castanheiros em Portugal cresceu 53% na última década, a produção aumentou 20% este ano, segundo a Associação Portuguesa da Castanha (RefCast), mas as mãos para darem conta de tanto trabalho é que são cada vez menos.
Pelos soutos de Bragança, Vinhais e Valpaços encontram-se famílias inteiras ocupadas com a campanha, que mobiliza todos os membros e nem os mais velhos ficam em casa.
Em Pinela, Bragança, Fortunato Rodrigues colhe 40 toneladas. Contrata trabalhadores para conseguir dar vazão à apanha. "Aqui na aldeia há pouca mão de obra, porque quase toda a gente tem castanha. Só mesmo contratando pessoal de [países de ] Leste", explicou, estimando que a sua produção cresça nos próximos anos. O futuro pode passar pela mecanização como alternativa à falta de trabalhadores. "Há gente que prefere não trabalhar porque ganham no desemprego ou têm rendimento mínimo", afirmou Fortunato, que por dia apanha 1200 quilos.
João Braz, 77 anos, farta-se de trabalhar para não deixar três toneladas de castanha nos soutos. "Se fosse pagar a jeira (50 a 60 euros por dia) nem dava para o gasto", admite o agricultor. Conta com a ajuda da companheira, Marília Portugal, de 90 anos. "Não podemos deixara castanha ficar", atesta a idosa, ágil na tarefa.
No souto ao lado, dois jovens afastam as folhas e os ouriços com sopradores, deixando as castanhas limpas e mais fáceis de apanhar por outras três pessoas, nomeadamente dois búlgaros.
Mobiliário: Empresário forçado a recusar encomendas
A falta de mão de obra qualificada já obrigou Carlos Santos, proprietário da Eurogeia Mobiliário, em Vandoma, Paredes, a recusar encomendas. "Desde setembro que não aceito encomendas. Já recusei projetos por não ter capacidade de resposta", diz o empresário, que trabalha essencialmente para a hotelaria. Atualmente com 35 funcionários, Carlos Santos precisa de mais trabalho qualificado. "De imediato, consigo empregar mais 10 pessoas", explica, lamentando que nem os pedidos ao Instituto de Emprego deem frutos.
A trabalhar sobretudo para exportação, tem França, Estados Unidos, Espanha e Tunísia como principais mercados. Mas já recusou dois trabalhos no mercado francês: "Tenho de dizer que não a novos projetos, porque falhar custa-me muito dinheiro", refere, acrescentando que tem 4000 m2 de fábrica, "todas as condições para crescer, mas faltam as pessoas". Com uma faturação de três milhões de euros em 2020, este ano, o saldo será inferior, "pela falta de mão de obra e de matéria-prima, outra dificuldade do setor e que será ainda mais grave", conclui.