Lojas online depressa perderam capacidade de resposta e agora é a vez do comércio local conquistar mercado.
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A forma de fazer compras mudou no último mês. Quem se desloca a uma grande superfície tem de esperar para entrar, procurar rapidamente os artigos de que necessita e aguardar noutra fila para pagar, tudo em silêncio e com preocupação de distanciamento.
Há um mês que utilizar os supermercados online se tornou praticamente impossível - há fila de horas para entrar e não há disponibilidade de entregas para as semanas (ou mês) seguintes. De repente, os pequenos negócios de bairro surgiram como alternativa para os consumidores e as entregas em casa tornaram-se obrigatórias para quem quer continuar a trabalhar para salvar a empresa. Com novos cuidados - luvas, máscaras, desinfetantes - e novas rotinas, pois as compras e as encomendas só vão até à porta do prédio, para manter longe o vírus.
evitar colapso
"Chegamos a ter mais de 70 mil pessoas a aceder ao site em simultâneo", explica fonte do grupo Auchan, que implementou uma fila de espera online para impedir o colapso do site. "O acesso ao Continente Online sextuplicou nas últimas semanas. Estamos a realizar todos os esforços para conseguir dar resposta a este aumento da procura", adianta fonte da Sonae MC.
Para quem consegue entrar nos sites, o pior é que não há qualquer disponibilidade para entregas em casa. No Auchan, quem quiser ir buscar as compras já prontas ao "Drive" só consegue agendar para daqui a uma semana, mais ou menos, conforme as localidades. No Continente, há menos lojas com "Click&Go" e as datas de levantamento de compras são ainda mais distantes, para daqui a três semanas.
Regras apertadas
De todo o modo, devido à Covid-19, as regras para as entregas em casa mudaram, seja para supermercados, estafetas de comida ou correios: os funcionários não entram no prédio dos clientes, não pedem assinatura de formulários e não recolhem os sacos, como faziam alguns supermercados. Os pagamentos são feitos, preferencialmente, online. E não há assinatura de receção.
"Tendo em vista a segurança dos clientes e dos cerca de cinco mil carteiros dos CTT, a assinatura nos terminais dos carteiros durante o processo de entrega de produtos de correio, expresso e carga foi suspensa", adiantou fonte dos CTT, sinalizando como exceção as citações ou notificações via postal e nos serviços "Entrega ao Próprio".
comércio local
Perante as dificuldades das multinacionais em satisfazer os fregueses, os pequenos negócios encontraram oportunidade de se manterem em funcionamento. Muitas mercearias, mercados municipais, restaurantes e outros estabelecimentos arranjaram forma de entregar ao domicílio quando os clientes deixaram de aparecer. Algumas autarquias questionaram os agentes económicos locais e elaboraram sites ou plataformas que listam quem está a funcionar e quem entrega em casa
"Será difícil aguentar além de maio"
No centro de Gondomar, ao pé do Largo do Souto, o restaurante Churrasqueira Brasinhas II viu o negócio praticamente parar, de um dia para o outro. A quebra de 90% na faturação em apenas duas semanas levou a empresa a iniciar entregas ao domicílio e a tratar do "lay-off" para a maioria dos 15 funcionários. "Se isto durar além de maio, vai ser muito difícil aguentar", desabafou o gerente, Paulo Marques.
A primeira reação do restaurante, no dia 18 de março, aquando da declaração do estado de emergência, foi encerrar portas. Enquanto não se esclarecia quem podia e não podia abrir e em que condições, o "Brasinhas" esteve parado. Garantida a autorização para funcionar apenas com "takeaway", que era já modelo de funcionamento da casa, reabriu e esperou pelos clientes habituais. Mas poucos (ou nenhuns) apareceram, obedientes cumpridores da ordem geral de isolamento social.
"Nos primeiros dias, foi um "holocausto" de mercadorias prestes a expirar", recordou o gerente. "Alguns fornecedores ainda aceitaram devoluções, outros nem isso, acabámos por dar aos funcionários, a alguns clientes, enfim, para não deitar fora comida que iria estragar-se", explicou.
Adaptação difícil
Os dias passaram-se e a quebra do negócio acentuou-se. Com 15 pessoas a trabalhar, agigantou-se a questão de como poderiam pagar ordenados. "Vamos ter de entrar em "lay-off", a maioria vai para casa e fica só o pessoal mínimo para manter a porta aberta", anunciou Paulo Marques. Os trabalhadores acenam com a cabeça por detrás do balcão, sabem que é impossível outra solução e estão preocupados com o que virá depois do "lay-off". "Vamos tentar por tudo manter a empresa, não fizemos como outros que encerraram e já não reabrem [estima-se 30% do setor], mas se isto durar além de maio, vai ser muito difícil", calculou.
Tudo está complicado para quem quer continuar a trabalhar. Os fornecedores imploram por pagamento, o Estado exige o IVA sobre a faturação dos meses bons e a caixa está vazia. Escasseiam os produtos habituais, aumentou o preço dos frescos. "As compras que se faziam em duas horas, agora demoram quase um dia. Só na fila para o Mercado Abastecedor estamos quase três horas, o que significa que ainda pagamos parque devido à demora", lamentou o gerente.
As entregas ao domicílio começaram na semana passada e estão a demorar a crescer, mesmo sem encomenda mínima e sem um raio de entrega limitado, com a boa vontade dos funcionários que levam a casa o frango assado (5,20€, com batata frita e arroz) ou o prato do dia (4€).
"O pior são os mais velhos, que não se adaptam ao que se passa e querem o serviço como antigamente. Também nós queríamos", rematou.
Pedidos de clientes dos 15 aos 90 anos
O acrílico ao balcão e a fita no chão que assinalam a distância de segurança para os clientes que aguardam a vez desmentem um dia normal no Ervanário Portuense, na Rua do Bonjardim, no Porto. O silêncio dentro da loja-sede é sintomático da crise que abala mesmo os negócios que não foram obrigados a fechar devido à Covid-19.
"Os clientes têm medo", resume Francisco Horta, gestor responsável pelo marketing da marca mais do que centenária, com sete lojas na Região Norte do país. As entregas ao domicílio acabam por manter uma espécie de serviço mínimo, tudo feito com cautelas e distâncias, pagamentos com multibanco ou MB Way, mediante uma taxa adicional para encomendas abaixo dos 100€.
"Já tínhamos pensado implementar um sistema de entregas só para as lojas, mas ainda não estava a funcionar. Com esta situação, tivemos de tratar disso, porque os clientes pediam", relata Francisco Horta.
As entregas ao domicílio servem principalmente uma clientela fidelizada, ao contrário das vendas online, que já existiam "desde 2012 ou 2013", e que permitem vender para qualquer parte do Mundo com portes grátis para compras acima de 30€ ou a possibilidade de levantamento nas lojas físicas sem custos acrescidos. Contudo, a loja online é "outro negócio" que não se confunde com o da loja de rua, nem responde aos clientes habituais.
"A nossa clientela das entregas ao domicílio é muito variada, podemos dizer que vai dos 15 aos 90 anos: desde os jovens, aos casais com filhos pequenos e aos reformados, basicamente todos os que não podem ou não devem sair de casa nesta altura", sintetizou o gestor.
Muitas cautelas
A procura dos clientes também é variada, uma vez que o stock de produtos vai desde as ervas simples para chás mais ou menos medicinais a suplementos vitamínicos que prometem o reforço imunitário ou a artigos para alimentação biológica e alternativa. Entre farinhas, massas, arroz, cereais simples ou de pequeno-almoço, sumos e outras bebidas, além dos referidos suplementos ou chás, facilmente a encomenda atinge os 100 euros mínimos para ficar isenta da taxa de entrega atual. Se não chegar a tanto, o valor "é calculado caso a caso, conforme a distância em relação à loja", rondando 1€ se estiver na Baixa, por exemplo.
"Temos um colaborador só para as entregas, que está devidamente equipado com luvas, máscara, álcool gel, terminal de pagamento que é desinfetado a cada utilização... e as encomendas são entregues à porta, com a distância de segurança a que já todos nos habituámos", justifica Francisco Horta. "Quando este período passar, logo vemos se mantemos o serviço ou se não tem procura suficiente. Para já, desde que começou tem tido muito boa adesão", acrescentou o gestor.
"Os bichinhos têm sempre de comer"
A cadeia de sete lojas da marca Panda Pet espalha-se pela Região Norte e conta com 19 anos de experiência de mercado. A fidelização de clientes entre donos de cães, gatos, pássaros, roedores e outros animais de estimação baseia-se, tal como noutros comércios de proximidade, no aconselhamento que o contacto pessoal proporciona, mas a Covid-19 quebrou esse elo.
"A nossa maior concorrência são as lojas online, que competem pelo preço. Às vezes, a diferença nem é muita, mas o cliente online é diferente do nosso", explica António Vilas Boas, o gerente da Panda Pet de Matosinhos. Há um mês que, sozinho, faz uma média diária de sete a dez entregas por dia em casa dos clientes, num raio de "mais ou menos" 10 km de Vila do Conde a Famalicão, de Matosinhos à Maia, passando pelo Porto, para minimizar as perdas do negócio de rua.
"Apesar de as pessoas terem comprado mais do que o normal naquela primeira semana de "loucura", não chegou para compensar as quebras nas vendas que temos tido entretanto", lamenta Vilas Boas.
"Houve produtos que esgotaram na primeira semana - havia quem levasse três e quatro sacos de areia de gato - e que foi complicado repor, não porque exista rutura de stocks no distribuidor, mas porque há uma dificuldade geral em obter as encomendas num tempo normal", explica o gerente da Panda Pet.
Manter o negócio
Agora, todas as lojas estão a funcionar com apenas uma pessoa, com exceção de Matosinhos, que ainda mantém três funcionários no ativo. Têm chegado para o movimento atual, reduzido a quase nada, quando "o medo de sair de casa" e as regras de isolamento social em vigor esvaziaram as ruas. A dificuldade de rotação de stocks nas prateleiras obriga a promoções inéditas nas lojas (até 60% de redução) para tentar escoar rações cujo prazo de validade se aproxima.
Foi por verem o negócio mal parado que nasceu a iniciativa de fazer entregas em casa e também o modelo "drive-through" - o cliente telefona e faz o pedido, dirige-se à loja, a encomenda é carregada na mala do carro e o pagamento é feito por multibanco.
"Esperamos que nos ajude a aguentar algum tempo, enquanto se mantém o estado de emergência. Afinal, os bichinhos têm sempre de comer e é por isso que estamos na lista das empresas autorizadas a funcionar", recorda o responsável.
Quem compra ração para cão ou gato, normalmente "já sabe que marca prefere e facilmente atinge os 50€ pedidos como valor mínimo de encomenda para as entregas em casa". A maioria dos utilizadores deste novo sistema da Panda Pet são "clientes que já conheciam as lojas", contudo Vilas Boas tem esperança de que "com a divulgação nas redes sociais e na página www.pandapet.pt" comecem a surgir mais clientes.