Fisco recusa atribuir os 125 euros a contribuintes sem rendimentos e que não estão inscritos no centro de emprego. Deco critica violação do princípio da igualdade.
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Milhares de contribuintes sem rendimentos no ano de 2021 mas que, ainda assim, entregaram a declaração de IRS estão excluídos do apoio de 125 euros a atribuir pela Autoridade Tributária (AT), no âmbito do conjunto de medidas implementadas pelo governo para ajudar as famílias a suportar os custos da inflação elevada. Estes agregados também não terão direito ao cheque por via da Segurança Social, porque não estão inscritos no centro de emprego nem são titulares de prestações sociais.
O Ministério das Finanças não respondeu às questões do Dinheiro Vivo sobre o universo de agregados negativamente afetados por este critério. Porém, e segundo as mais recentes estatísticas da Autoridade Tributária, que se reportam a 2020, existiam mais de 736 mil contribuintes no escalão mais baixo de rendimentos, isto é, entre zero e cinco mil euros brutos anuais, pelo que é possível deduzir que milhares tenham apresentado a declaração de IRS sem qualquer tipo de rendimento.
A decisão do Fisco de excluir do apoio contribuintes sem rendimentos declarados em 2021 apanhou completamente de surpresa milhares de famílias quando consultaram o Portal das Finanças para verificarem se eram ou não elegíveis para o pagamento do cheque. "O decreto-lei que cria os apoios e as declarações do governo sobre este subsídio não foram claros", critica Marta Canas, especialista em Direito Fiscal da Deco (Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor). Ao Dinheiro Vivo, a fiscalista destaca que "o diploma prevê a atribuição do apoio a quem tenha declarado, em sede de IRS, rendimentos brutos até 37 800 euros anuais ou 2700 euros brutos mensais, não clarificando se uma pessoa sem rendimentos tem ou não direito".
Nesta situação, e segundo casos que chegaram ao Dinheiro Vivo, estão sobretudo domésticas que optaram pela tributação conjunta com o marido. Ou seja, "entregaram a declaração de IRS e, por isso, também são sujeitos passivos do imposto", esclarece ao Dinheiro Vivo o fiscalista João Espanha, da sociedade de advogados Espanha&Associados.
Casos
Num email que chegou ao Dinheiro Vivo, Albérico Lopes revelou que a neta, mãe de três filhos menores, com idades de 11, 10 e seis anos, optou por ser doméstica para tomar conta dos dependentes, tendo-lhe sido recusado o apoio de 125 euros pelo Fisco por não ter rendimentos em 2021, apesar de ter entregue a declaração de IRS em conjunto com o marido. A mulher do casal recebeu apenas metade dos 50 euros por cada um dos filhos. "É uma injustiça tremenda que uma pessoa fique em casa a dar assistência à família e depois não tenha direito ao subsídio, ainda por cima quando o marido recebe apenas 900 euros brutos por mês para uma família com cinco pessoas!", desabafa.
Noutro caso, uma mulher de 60 anos, sem rendimentos de trabalho, desempregada de longa duração, mas que já não se encontra inscrita no Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) por estar à espera da reforma, nem é elegível para beneficiar de uma qualquer prestação social, também foi excluída do apoio de 125 euros pela AT, embora tenha entregue a declaração do IRS com o marido, reformado com uma pensão de cerca de 800 euros. Aliás, quando o governo anunciou o apoio, a visada chegou a questionar a Segurança Social sobre se teria direito ao cheque, uma vez que já não se encontrava inscrita no centro de emprego, e as funcionárias responderam que iria receber através das Finanças, por ter entregue a declaração de IRS.
A fiscalista da Deco, Marta Canas, considera que existe "um problema de violação do princípio da igualdade, que decorre da Constituição, uma vez que a lei está a tratar estes cidadãos como cidadãos menores, quando têm tanto direito ao apoio como quem recebe o subsídio de desemprego". "A discriminação positiva, quando se estabelece um teto máximo de rendimentos para ter acesso ao subsídio aceita-se, mas não a discriminação negativa, que é condenável". O perito em Direito Fiscal, João Espanha, também se junta ao coro de críticas, afirmando que, "do modo como a lei está a ser aplicada, está-se a beneficiar os agregados em que ambos trabalham, o que não faz sentido". "O sujeito passivo pode não ter rendimentos, mas continua sujeito ao imposto por via da tributação conjunta", vinca.
Na semana passada, a Autoridade Tributária esclareceu que quem não está obrigado a apresentar a declaração de IRS por ter rendimentos inferiores a 8500 euros anuais pode agora fazê-lo, sem qualquer penalização, uma vez que o prazo terminou a 30 de junho, para ter direito ao apoio de 125 euros. Se não tiver quaisquer ganhos é automaticamente excluído pelo Fisco. O pagamento dos subsídios de 125 euros e de 50 euros por dependente arrancou no passado dia 20, ao ritmo de 500 mil transferência diárias. O governo estima concluir o processo até ao final do mês. Caso não seja possível efetuar transferência por erro do IBAN, a AT irá repetir o processo em novembro e assim sucessivamente durante seis meses, ou seja, até abril de 2023. Ao todo serão abrangidos cerca de cinco milhões de contribuintes. Já no caso dos beneficiários de algumas prestações sociais, exceto pensões, o apoio foi pago pela Segurança Social no passado dia 24 de outubro, a 1,6 milhões de pessoas. O apoio excecional aos rendimentos custará cerca de 840 milhões de euros, segundo o governo.