Autoridade para as Condições de Trabalho abriu 6615 processos em 2021. Sindicatos alertam para a "falta de intervenção" da inspeção e para desgaste físico e psicológico de trabalhadores.
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Mais de cinco mil empresas foram apanhadas, no ano passado, a desrespeitar os horários dos trabalhadores. Em 2021, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) abriu 6615 processos inspetivos a 5589 empresas por "matérias relacionadas com organização dos tempos de trabalho". Destes, contam-se 278 processos instaurados a 255 empregadores pelo incumprimento dos direitos dos trabalhadores por turnos. Os sindicatos alertam para a falta de meios da ACT e para o desgaste físico e psicológico que este modelo de trabalho provoca.
O número de empresas visadas pela Autoridade para as Condições de Trabalho e de processos inspetivos abertos quase não sofre alteração entre 2021 e o primeiro ano da pandemia de covid-19. Em resposta ao JN, a ACT dá conta de um ligeiro decréscimo nos processos instaurados e nas entidades empregadoras fiscalizadas no ano passado face a 2020. Nesse ano, os inspetores abriram mais de sete mil processos (7065) a 5595 entidades empregadoras e foram registadas 974 infrações por incumprimento dos horários dos trabalhadores.
Trabalhar 16 horas
No entanto, os sindicatos garantem que muitos pedidos de fiscalização, submetidos à ACT, ficam sem resposta por falta de meios. Célia Portela, da União dos Sindicatos de Lisboa, alerta para a "falta de intervenção atempada" da autoridade. "Às vezes, nem respondem. Noutras vezes, dizem que o processo está em avaliação. Isto leva anos", frisa.
A sindicalista garante que os sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal, da Função Pública e dos Enfermeiros Portugueses recebem, diariamente, queixas dos trabalhadores sobre incumprimento dos horários de trabalho. "Chegam a fazer 12 e 16 horas", afiança. O adiamento da contratação de mais trabalhadores leva a que estas situações aconteçam, também, em hospitais públicos e privados. No setor social, "há instituições que não se "importam" de pagar a coima, em vez de corrigir" as situações de infração, acrescenta a sindicalista.
Também o Sindicato dos Transportes Fluviais, Costeiros e da Marinha Mercante adverte para o "excesso de trabalho extraordinário" e para a falta de mão de obra qualificada, que é "muito deficiente". Rui Matias, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura e das Indústrias de Alimentação, Bebidas e Tabacos de Portugal, acusa a ACT de falta de vontade e de não fiscalizar as empresas. Para o sindicalista, a falta de meios da ACT é uma "desculpa clássica", uma "falácia total", considera.
Exaustão e Desgaste
O trabalho noturno e por turnos interfere, negativamente, com o bem-estar dos colaboradores. Quem o diz é a Ordem dos Psicólogos. Num estudo publicado em 2018, a ordem aponta a perturbação no sono e problemas de saúde física e psicológica, como depressão e ansiedade, como alguns dos riscos associados a estes regimes.
"Todos os trabalhadores com quem falamos apresentam sinais de cansaço e desregulação", assegura o sindicato dos Transportes Fluviais, Costeiros e da Marinha Mercantes. A Célia Portela, também chegam relatos de "trabalhadores em situação de exaustão, que são obrigados a meterem baixas por não aguentarem mais".
O mesmo acontece no setor da alimentação, bebidas e tabacos. Para "alimentar a grande distribuição", os trabalhadores fazem horas extra, sustenta o sindicalista Rui Matias, certo de que este fenómeno aumentou "muito" durante a pandemia e está a levar ao desgaste dos trabalhadores.
Testemunho
A vida familiar entre turnos e poucas horas de sono
Sérgio Crescêncio e Carla Pinheiro têm dois filhos menores e trabalham os dois por turnos há mais de dez anos. Sérgio é condutor na Carris e Carla é operadora de loja no Pingo Doce. Ao JN, relatam a vida desgastante que o trabalho provoca e o esforço para conciliar os turnos com a vida familiar. Como trabalham ambos por turnos, têm de se organizar, intercalando horários, para estar sempre alguém em casa com os filhos, seja para ir levar à escola ou preparar refeições. "A vida familiar fica para as folgas, pouco mais", disse Sérgio. O sono também fica bastante prejudicado, acrescentam. Habituaram-se a dormir poucas horas por terem os horários desregulados, e Carla confessa que já recorreu a certas substanciais - naturais, ressalva - para dormir. O desgaste físico e psicológico vai-se sentido com o tempo e o corpo habitua-se à rotina, contaram.
Saber mais
Turnos só podem durar oito horas
Por lei, os turnos têm a duração máxima de oito horas de trabalho por dia, o que corresponde a 40 horas por semana. Este limite pode ser aumentado até quatro horas por dia, se o trabalhador apenas fizer turnos nos dias de descanso semanal da generalidade dos colaboradores.
Guia sobre saúde mental no trabalho
A Direção-Geral de Saúde lançou, em setembro, um guia para minimizar os riscos para a saúde mental nos locais de trabalho, que alerta para alguns fatores de risco, como os turnos, o horário noturno, a "monotonia do trabalho", a "repetitividade de tarefas" e os conflitos laborais.