Mercado nacional está saturado e burocracia trava vendas para o estrangeiro. Vestuário não se reergue e exportações afundaram.
Corpo do artigo
O fabrico de máscaras e outros equipamentos de proteção contra a covid-19 foi um balão de oxigénio para o setor têxtil, mas está a acabar. Com o mercado nacional saturado e as exportações impregnadas de burocracias para a certificação, as encomendas caíram a pique e Portugal já está longe do milhão de máscaras diárias que estava a produzir no início de maio.
O sentimento é unânime e as associações empresariais mais representativas convergem na preocupação sobre o futuro do têxtil, uma vez que o valor da produção de máscaras perdeu peso e o vestuário teima em não se reerguer, por causa do fecho de algumas das principais lojas de retalho.
"A produção baixou consideravelmente porque já todos temos várias máscaras", constata Mário Jorge Machado, presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP). No início de maio, o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, anunciou que Portugal estava a produzir mais de um milhão de máscaras por dia. Não há números oficiais, mas dois meses depois "a quantidade não está nem perto", estima César Araújo, da Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confeção (ANIVEC). "Parece que o negócio das máscaras já não é negócio, há essa informação", corrobora Francisco Vieira, do Sindicato Têxtil do Minho e Trás-os-Montes.
EUROPA DIFICULTA EXPORTAÇÕES
Com o mercado nacional saturado, a exportação era a esperança da maioria dos empresários. Afinal, a Europa tem mais de 500 milhões de habitantes e todos precisam de máscara. Contudo, as empresas portuguesas estão a esbarrar na necessidade de certificarem os protótipos em cada um dos países de destino, independentemente de já terem conseguido a certificação em Portugal. "A Europa não conseguiu uniformizar os certificados e muitos países exigem que os certificados sejam do seu país", explica César Araújo.
A Euratex, confederação europeia do setor, já pediu à Comissão Europeia a uniformização dos critérios. Têm existido reuniões entre institutos europeus ligados aos medicamentos, onde Portugal é representado pelo Infarmed, mas o consenso tarda em chegar. "Tem prejudicado bastante a indústria nacional", conclui o presidente da ATP, que anteontem debateu o tema em reunião daquela confederação.
O impasse europeu está no facto dos países terem adotado critérios diferentes. A Alemanha, por exemplo, exige uma filtração mínima de partículas de 75% para certificar cada máscara, ao passo que em Portugal e França é 70%. Alguém terá de ceder. Até lá, os números que chegam do estado do setor são alarmantes. O Instituto Nacional de Estatística contabilizou uma quebra de 43% das exportações em abril, face ao mesmo mês de 2019. A redução das encomendas europeias de vestuário foi o que mais contribuiu para essa descida.
1620 PROTÓTIPOS CERTIFICADOS
A sobrelotação do mercado não impediu, no entanto, que cada vez mais empresas procurassem os laboratórios nacionais para certificarem máscaras sociais. No site do Citeve, o principal mas não o único laboratório a certificar máscaras, anteontem havia 1620 protótipos aprovados, sendo que 1454 correspondiam a modelos reutilizáveis. Destes, 56 passaram no teste das 25 lavagens e nem todas são feitas pelo setor têxtil, pois as indústrias do calçado e automóvel também estão a fabricar.
Faturação triplicou em abril mas no fim de maio tivemos zero encomendas
A instabilidade do negócio das máscaras sociais reutilizáveis está bem expressa nos altos e baixos da faturação da Double Needle, empresa têxtil de São Martinho do Campo que, como muitas, não sabe como vai ser o futuro.
Graças a uma grande encomenda de França, em abril, as agulhas da Double Needle não pararam de fabricar máscaras e isso catapultou a faturação da empresa para os 120 mil euros, o triplo do que seria normal para esta época. Porém, o entusiasmo foi breve. "A faturação triplicou em abril mas no fim de maio tivemos zero encomendas", revela Paulo Trindade, diretor administrativo, financeiro e comercial da empresa do concelho de Santo Tirso.
Junho já trouxe uma encomenda nacional e outra internacional, o que deixou as três filas de máquinas da Double Needle a trabalhar sem cessar. Ali, as máquinas estão expostas em linhas meticulosamente encarreiradas e todas são conduzidas por mulheres, muitas jovens, que não levantam o olhar por um segundo enquanto as agulhas sobem e descem a esquartejar o tecido verde de forma tão veloz que só o olhar atento consegue vislumbrar, e por breves milésimos de segundo, a ponta metálica. São cerca de 30 trabalhadoras, todas de máscara, cada uma com o frasco de álcool-gel ao lado.
CERTIFICADA EM FRANÇA
O barulho intenso e cheiro a tecido que resulta da laboração só foi possível porque a Double Needle conseguiu certificar um protótipo de uma máscara social em França. "Fomos buscar à AFNOR que é a norma de referência em França para desenvolver a máscara", desvenda o diretor. Três camadas, um filtro, dois tecidos de 100% algodão e capacidade de filtragem mínima de 70% foram os requisitos que a Double Neddle teve de cumprir em França. Dez dias depois do envio do protótipo chegou a certificação.
Com Espanha, a Double Neddle tentou fazer o mesmo. Entusiasmada com o sucesso da certificação em França e Portugal, enviou um protótipo igual de máscara social reutilizável, mas "o Governo espanhol não autorizou a certificação", lamenta o diretor, que critica "a falta de uma norma europeia".
No vestuário, o cenário da Double Needle é arrasador. Nos últimos três meses, a empresa teve apenas uma encomenda de 700 peças quando, sem pandemia, cada mês de verão dava para produzir 4500. "Essencialmente, desde abril, só estamos a produzir máscaras, batas e outros equipamentos de proteção", explica a gerente, Cristina Abreu, que decidiu fundar a Double Needle em 2016 e nunca teve tão poucas encomendas para peças de roupa.
RECADO AO GOVERNO
"A produção de máscaras está a baixar e não é por culpa das empresas, porque estamos a fazer um esforço terrível", recentra Paulo Trindade. Por um lado faltam encomendas e clientes, por outro há a concorrência das máscaras descartáveis. São aquelas mais poluentes de uso único que já são mais do que as alforrecas no oceano e que, segundo o ministro do Ambiente, "é fundamental não usar".
A frase de João Pedro Matos Fernandes que vem à memória de Paulo Trindade também traz uma questão provocatória: "Eu gostava de perguntar ao senhor primeiro-ministro e ao Governo porque é que eles louvam tanto o têxtil português e depois se apresentam na televisão com máscaras cirúrgicas descartáveis da China".