
Foto: André Rolo
Ainda não é desta que o fado volta à Adega Rio Douro, à chamada Casa Piedade, na varanda da Rua do Ouro. Por que será? Depois da pandemia nunca mais voltou. Será do coração?
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O homem abeirou-se da mesa a medo, as mãos junto ao peito, como se tivesse frio, cheio de respeito, e curvou-se como numa prece. Pigarreou.
-As minhas desculpas por interromper a refeição, Dona Piedade, Maria Alice, minhas senhoras, as desculpas, desejo já continuação de bom apetite, mas é que gosto tanto e sinto tantas saudades que tenho que perguntar, o fadinho nunca mais vai voltar aqui a esta sua casa? É que era tão bonito, estava sempre cheio, tantos estrangeiros, vinha tanta gente, mais nós os daqui, sempre tanta gente, juventudes, por que é que acabou aqui o fadinho das terças-feiras, Dona Piedade?
As cinco mulheres, Maria Alice dum lado, Dona Piedade do outro, mais as cozinheiras, a Andreia do "Pepino" à cabeceira, pararam todas de comer, nem mastigaram, congelaram todas, e pôs-se ali na sala um silêncio tal que apesar de ter durado um só segundo pareceu àquele homem que durou mais de cem.
Dona Piedade agarrou o guardanapo, elevou-o como se fosse desempoar a voz e com toda a velocidade disse num despejo:
-Volta para o ano.
-Ai que bom, o ano está quase a acabar, disse logo o homem muito depressa, e continuou ali, mais embaraçado que aliviado, a retorcer as mãos como se as fosse morder. O Tito tinha-lhe dito:
-Podes lá ir, tenta a tua sorte, não me parece, mas vai, pergunta.
E o Tito disse isto cheio de reticências, debruado em educação, a limpar excessivamente o balcão, ele que já sabia, estava farto de saber, a resposta que aí vinha.
Depois da Dona Piedade dizer velozmente volta para o ano, pôs-se a seguir outro silêncio como o primeiro, ou pior, ou melhor, um silêncio ainda maior, duzentos segundos, e depois a Maria Alice disse:
-Ó, dizes sempre isso, mãe, volta sempre para o ano.
E piscou o olho ao homem, como quem diz, não volta nada, não acredites, ela é que sabe.
As mulheres recomeçaram a comer, o Tito parou de embaçar o balcão (pôs um sorriso trocista, não foi bem trocista, foi mais um sorriso de piedade), tilintavam os talheres, o vozerio planava outra vez. Mas o homem continuava ali, retorcido, sem ir nem vir, com medo de dizer. Mas disse:
-Mas volta mesmo?, é que vi ali o papel no vidro a anunciar fados no dia 18 à noite, fiquei tão contente, mas depois o Tito disse que não era aqui, nem reparei, pois diz ali, é no Tia Aninhas, não é aqui, aqui é que era bonito, ó Dona Piedade.A seguir passou outra vez a eternidade. E a Dona Piedade disse:
-Dá muito trabalho.
Seguiu-se uma troca de dizeres, a Maria Alice disse:
- Trabalho dá tudo, há outra verdade, quer que eu diga a verdade? Não vou dizer.
As outras mulheres não tugiam, o Tito também não, ninguém se mexia, ninguém se metia, o homem tolhido, parecia que morria.
-Dá muito trabalho, caralho!
E toda a gente se aliviou, rebentada a rir, e o homem ali ficou, estatuado, ainda lá está, sem saber como se faz para desaparecer.
Por que será? Só pode ser uma coisa do coração.
