No olhar aguçado e irónico do escritor José Rodrigues Miguéis, revela-se uma Europa à beira do abismo, nos anos 30, que ainda não tinha percebido para onde caminhava. E nós, 90 anos depois, já percebemos?
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Numa tarde de fim de verão, uma tempestade leva um homem a entrar num restaurante de um parque. Estamos em meados do século XX, em Boitsfort, Bruxelas, e o que ele vai encontrar no restaurante, revigora-o. O português expatriado reconhece o prato da ementa: "sopa de nabos com feijão branco, à portuguesa". E logo pede para chamar o dono, também português, que lhe contará a história da sua vida e de um episódio que o mudou radicalmente.
É esta a premissa de "Uma aventura inquietante", um romance policial de José Rodrigues Miguéis (1901-1980), que, como todos os bons romances policiais, é muito mais do que isso. Escrito em fascículos para o jornal "O Diabo", entre 1934 e 1936 (o prefácio acima referido é acrescentado apenas nos anos 50, aquando da publicação em livro), segue a história de Zacarias, um português que vive em Bruxelas durante a ascensão e consolidação dos fascismos. E, não abordando claramente assuntos políticos, o livro é uma janela notável para uma Europa que caminha para um dos momentos mais sombrios da sua história.
Com ironia e precisão, Miguéis, exilado político, que viveu grande parte da sua vida nos Estados Unidos, consegue traduzir o ambiente social no coração da Europa naquela época. Este é o contexto mas também o mote para o que vai acontecer ao pacato Zacarias d" Almeida, que é falsamente acusado de ter assassinado uma mulher, também ela expatriada. A cabala é montada precisamente para ser um estrangeiro o bode expiatório do crime ("Oh, estes estrangeiros, estes latinos [...] estes tipos não são de fiar"). O português tenta defender-se: "sou um homem de bem! Quando entrei neste país era rico. Tudo o que eu tinha cá ficou. E nunca me queixei, não chamei a polícia, conformei-me com a minha triste sorte! [...] Que poderia eu contra os poderosos que me esfolaram? Um fraco, um estrangeiro, um só! [...] Ando por este mundo nas pontas dos pés para não incomodar ninguém".
Nem este viver baixinho lhe serviu de nada pelo simples facto de ser um português num momento em que a xenofobia andava pelas ruas. Como se percebe nesta conversa violenta de um grupo de "velhas": "O país anda infestado de estrangeiros. Têm sido a nossa desgraça. [...] A quem a senhora o diz! Uma corja - polacos, judeus, italianos, russos... Ah esta terra era uma bênção. Agora é deles. Era acabar-lhes com a raça. Rua. Vão roubar para a vossa terra". Uma mulher que aluga quartos acrescenta: "pois já lá tenho um letreiro na campainha da porta: estrangeiros e cães, é escusado bater [...] Há risos em redor de aprovação".
Não deixa de ser arrepiante ler estas frases escritas há quase nove décadas. Principalmente quando se sabe o que aconteceu ao mundo nos anos que se seguiram. Para Zacarias, tudo vai terminar bem. Para muitos milhões de pessoas, não.