A nova Lei da Saúde Mental, promulgada a 10 de julho por Belém, entra em vigor no domingo e vem substituir uma legislação com mais de 20 anos. O diploma foca-se na garantia de mais direitos aos cidadãos com necessidades de cuidados de saúde mental. Eis as principais alterações.
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O que é a Lei da Saúde Mental?
Há mais de 20 anos que Portugal tem uma lei dedicada aos cidadãos com necessidades de cuidados de saúde mental. O diploma - que substitui a lei em vigor desde 1998 e a legislação conexa no Código Penal, Código de Execução das Penas e o Código Civil - incide sobre a definição, os fundamentos e os objetivos da política desta área, consagra os direitos e deveres dos cidadãos com necessidades de cuidados de saúde mental e regula as restrições destes direitos e as garantias da proteção da liberdade e da autonomia dos doentes.
Esta revisão surge, por um lado, da necessidade de atualizar a lei, considerando os avanços clínicos conseguidos nas últimas décadas, e, por outro, de Portugal responder aos compromissos que assumiu em linha com as recomendações da Organização Mundial de Saúde, do Conselho da Europa, da União Europeia e de outras instâncias internacionais.
A nova lei insere-se na reforma da saúde mental no serviço público que o Governo pretende concluir até final de 2026 e que tem orçamentados 88 milhões de euros no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
Como foi votada esta lei?
O debate em torno desta matéria foi levado pelo Governo ao Parlamento na anterior sessão legislativa. O documento final foi aprovado com os votos favoráveis da bancada socialista e do PCP, os votos contra do PSD e do Chega e abstenções da Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda, PAN e Livre.
Apesar de ter considerado que a nova lei carece de "densificação de alguns conceitos e figuras jurídicas", o presidente da República acabou por promulgar o diploma a 10 de julho, sem o ter enviado ao Tribunal Constitucional.
A que alterações estão sujeitos os reclusos inimputáveis?
A nova lei obriga à libertação dos cidadãos inimputáveis depois de terem cumprido a duração máxima da pena prevista para o crime a que foram condenados. O que significa que as medidas de segurança de internamento de reclusos inimputáveis deixam de ter uma duração ilimitada ou perpétua. Não obstante, a cessação do internamento depende da decisão de um juiz.
O diploma revogou a disposição do Código Penal que, até agora, permitia a prorrogação sucessiva, a cada dois anos, do internamento de doentes mentais que cometeram crimes com penas superiores a oito anos, e que, na prática, resultava numa reclusão sem limite à vista.
A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) revelou, ao JN, que nesta fase 46 inimputáveis terão de ser libertos. Periodicamente surgirão mais pessoas nesta situação.
Em causa estão pessoas que já ultrapassaram a duração máxima da pena prevista para o tipo de crime que cometeram. Os reclusos inimputáveis internados em ambiente prisional estão divididos pela Clínica Psiquiátria do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, e no Hospital Prisional de São João de Deus, em Oeiras, bem como em instituições de saúde sob a tutela do Ministério da Saúde.
Que respostas haverá para os reclusos inimputáveis?
O Governo formou um grupo de trabalho, envolvendo os ministérios da Justiça, Saúde e Segurança Social, para analisar a situação pessoal, familiar e social dos reclusos inimputáveis internados que serão agora libertos com o objetivo de encontrar soluções ajustadas a cada um.
No seguimento da promulgação da lei, a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, garantiu que a equipa multidisciplinar fez a caracterização dos reclusos - um trabalho planeado com antecedência -, e caso não possam ser acolhidas pelas famílias a saúde e a segurança social são respostas que "estarão na primeira linha". Admite-se, por isso, que se for necessário, as urgências hospitalares e a emergência social possam dar uma resposta imediata aos reclusos.
Sem uma norma transitória para encontrar uma solução para a inserção destes cidadãos na sociedade, as entidades que os têm à sua guarda criticam o prazo de 30 dias para a lei entrar em vigor, depois de promulgada.
Ao JN, numa resposta escrita conjunta dos três ministérios, fonte do gabinete da ministra da Justiça esclareceu que estes cidadãos serão acolhidos pelas famílias, em lares de idosos e lares residenciais para pessoas com deficiência, em diferentes respostas habitacionais e em instituições de saúde ou em unidades da rede de cuidados continuados integrados de saúde mental.
A mesma fonte garantiu ainda que caso estes cidadãos necessitem de manter um acompanhamento de saúde mental, "será sempre assegurado pelos serviços locais da área da residência".
Em que casos podem ser determinados os internamentos compulsivos?
Com a reforma legislativa, internar os doentes mentais será mais difícil. A nova lei admite o internamento compulsivo nos casos em que os cuidados de saúde são urgentes e o doente recusa recebê-los.
Por isso, o internamento hospitalar deve ser uma medida de último recurso. Aliás, nesses casos, a nova lei dá prioridade ao tratamento involuntário, preferencialmente em regime de ambulatório e só excecionalmente através de internamento.
De forma a não privar os doentes da sua liberdade, o diploma dá prioridade à prestação de cuidados de saúde mental no meio menos restritivo possível. Por isso, sempre que possível, os doentes devem ser tratados em casa. Também a avaliação clínico-psiquiátrica passa a poder ser realizada na casa do doente. Até agora só podia ser feita no hospital.
Que outros direitos têm os doentes?
A nova lei dá mais capacidade de decisão aos cidadãos com doença mental, que só podem ficar interditos dos seus direitos após avaliação psiquiátrica, se o tribunal o decretar.
Os doentes passam a poder eleger uma "pessoa de confiança" (uma nova figura prevista na lei, intencionalnmente informal) para apoiar o seu percurso de cuidados e no exercício dos seus direitos. Podem ainda expressar, antecipadamente, diretivas de vontade relacionadas com os seus cuidados.
A lei determina que os doentes podem ser sujeitos a tratamento involuntário caso recusem o que foi medicamente prescrito e só em situações de perigo para si ou para terceiros. Essa é uma decisão judicial que deve ser "fundamentada e baseada numa avaliação clínico-psiquiátrica".
Mesmo nestas situações, deve ser salvaguardada "a hipótese de participação e decisão do cidadãos na elaboração do seu plano de cuidados".