A investigação sobre a forma como o cérebro humano armazena a informação poderá dar origem a tratamentos para pessoas com dificuldades nas tarefas quotidianas.
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Jan Buitelaar, especialista em doenças do neurodesenvolvimento, está intrigado com uma possível ligação entre a perturbação de hiperatividade e défice de atenção – ou PHDA – e a memória.
Embora os genes desempenhem um papel substancial no PHDA, Buitelaar acredita que a parte do cérebro responsável por armazenar os registos, conhecida como “memória de trabalho”, também o faz. A memória de trabalho armazena uma quantidade limitada de informações, como um endereço ou um número de telefone, durante um breve período de tempo, ao mesmo tempo que fornece uma base fundamental para processos mentais mais elevados, como a tomada de decisões.
Teste de armazenamento
"Quando um professor explica algo a um aluno, espera-se que a criança retenha muita dessa informação ativa na sua mente e também que a integre com factos e conhecimentos armazenados noutros locais do cérebro", afirma Buitelaar, que conduz a investigação no Centro Médico da Universidade de Radboud, nos Países Baixos. "Estas funções são realizadas pela memória de trabalho."
Agora, um projeto financiado pela UE procura esclarecer as ligações entre doenças mentais como o PHDA e a memória de trabalho.
Embora o PHDA afete milhões de pessoas na Europa, está longe de ser a única doença neurológica associada aos défices de memória de trabalho.
"A memória de trabalho pode estar comprometida em muitas doenças, desde a esquizofrenia à doença de Alzheimer e à doença de Parkinson, mas também no envelhecimento saudável", afirmou Bernhard Spitzer, neurocientista cognitivo do Instituto Max Planck para o Desenvolvimento Humano, na Alemanha. "Assim sendo, a sua compreensão é muito importante." Spitzer lidera o projeto da UE, denominado DeepStore e tem uma duração de cinco anos, até 2026.
Embora a memória de trabalho tenha uma capacidade muito limitada – em qualquer altura, pode acomodar apenas quatro a sete informações – é essencial para o funcionamento normal do ser humano e representa aquilo a que Spitzer chama de “superpoder”.
Maravilha ágil
Quando a memória de trabalho não funciona corretamente, as pessoas perdem a noção do que fizeram momentos depois de o terem feito; por exemplo, esquecem-se de que colocaram uma toalha no saco do ginásio logo após o terem fechado.
"Se as nossas capacidades de atenção são fracas, temos lapsos constantes no que entra na nossa memória de trabalho", afirma Buitelaar. "Por isso, estas ligações são muito mais difíceis de estabelecer."
A equipa do DeepStore tem como objetivo lançar as bases para melhores tratamentos para as pessoas com problemas nesta área, alargando a compreensão sobre como e onde o cérebro armazena estas memórias.
Até há pouco tempo, a sabedoria convencional defendia que o sistema de memória de trabalho residia inteiramente no córtex pré-frontal do cérebro. Atualmente, sabe-se, embora com poucos detalhes, que também estão envolvidas muitas outras partes do cérebro.
"A forma como o armazenamento da memória de trabalho é distribuído no cérebro ainda precisa de ser explicada", afirma Spitzer. "Se conseguirmos desvendar este enigma, daremos um passo importante para compreender o superpoder da memória de trabalho."
A equipa acredita que a importância da memória de trabalho reside na sua agilidade: a sua capacidade de transformar e reformatar as informações.
"Agora sabemos que é altamente adaptativa e dinâmica", declara Spitzer. "A título de exemplo, se eu segurar numa caneta, pode guardar a informação que tem diante dos olhos na sua memória de trabalho em inúmeros formatos: como uma imagem fotográfica, como um conceito abstrato ligado ao que sabe ser a função de uma caneta ou como um objeto que está a ser segurado num determinado ângulo. O seu cérebro será capaz de alterar o formato de acordo com a tarefa para a qual é necessário."
A equipa do DeepStore está a utilizar rastreios oculares, tomografias cerebrais funcionais e outras técnicas não invasivas para medir a atividade cerebral e os campos magnéticos nas pessoas.
Numa fase posterior, os investigadores analisarão os dados de elétrodos implantados no cérebro de primatas não humanos para decifrar os fundamentos neurais da memória de trabalho até ao nível de uma única célula.
"No final da nossa investigação, esperamos ter uma melhor compreensão da dinâmica da memória de trabalho e da forma como esta nos fornece a informação certa no momento certo para qualquer tarefa que tenhamos em mãos", afirma Spitzer.
Saber sobre e como
Ao passo que algumas pessoas têm dificuldade em reter informações transitórias, outras têm dificuldade em armazenar, preservar e recuperar dados absorvidos no passado.
A memória a longo prazo é o foco de outro projeto de investigação financiado pela UE. Denominado MemUnited, tem a duração de dois anos e meio até maio de 2025 e é uma colaboração entre a Universidade de Ghent, na Bélgica, e Universidade de Columbia, nos EUA.
Os investigadores pretendem aprofundar o conhecimento sobre os processos neuronais partilhados pelos dois principais sistemas cerebrais de suporte da memória a longo prazo: o “declarativo” e o “processual”.
Os processos da memória declarativa permitem a recordação consciente de factos e acontecimentos passados: o “saber sobre”. Tal abrange tanto os conhecimentos gerais, como os conceitos científicos e as experiências pessoais.
Os processos de memória processual apoiam a retenção de competências, hábitos e “memória muscular”. Esta é a função “saber como” que inclui aspetos como andar de bicicleta ou preparar uma chávena de café.
"Normalmente, as pessoas utilizam o conhecimento processual para fazer uma chávena de café e selecionam automaticamente as ações necessárias pela ordem certa", afirma Nina Dolfen, uma psicóloga belga que dirige o MemUnited.
Sobreposição de oportunidades
Até há pouco tempo, os especialistas pensavam que os sistemas de memória processual e declarativa funcionavam de forma independente e envolviam diferentes partes do cérebro. No entanto, as tomografias ao cérebro efetuadas na última década mostraram que alguns processos neurais são partilhados, com ambos os sistemas a acederem ao hipocampo – uma parte importante do cérebro associada à memória.
No entanto, pouco se sabe sobre a sobreposição.
"Se estes dois sistemas de memória interagirem entre si, é possível que um processo cerebral intacto possa funcionar como um andaime, oferecendo um suporte à aprendizagem numa área onde existe um défice", afirmou Dolfen.
Existem exemplos em que um tipo de memória a longo prazo é treinado para compensar o outro após uma lesão cerebral como, por exemplo, um acidente vascular cerebral.
Dolfen referiu-se ao exemplo dos passos envolvidos na preparação de uma chávena de café para ilustrar o possível impacto no cérebro das pessoas que sofreram um AVC.
"Podem não se lembrar da ordem dos passos, embora mantenham a capacidade de executar as ações individuais necessárias para completar a tarefa", afirma.
Dolfen apresentou a perspetiva de, eventualmente, ajudar essas pessoas, explorando a sua memória declarativa através de pistas visuais, com cada passo do processo representado por uma imagem diferente.
Dado que a investigação ainda se encontra na fase fundamental e não aplicada, o exame de voluntários saudáveis é a melhor forma de estudar a sobreposição entre os sistemas de memória declarativa e processual.
Dolfen está a realizar testes de memória em 35 voluntários jovens e saudáveis, enquanto monitoriza a sua atividade cerebral através de ressonância magnética funcional, ou RMf.
Em última análise, espera que os cientistas utilizem os seus resultados para tirar partido das formas como estes dois tipos de memória a longo prazo se sobrepõem.
"Se conseguirmos encontrar formas criativas de devolver às pessoas a sua independência após uma lesão, isso seria ótimo", afirmou Dolfen.
Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.