Europa deveria duplicar o financiamento da investigação e simplificar os procedimentos
Um relatório de peritos independentes sobre os programas-quadro de investigação e inovação da UE recomenda um papel importante para o financiamento da investigação e uma reestruturação dos mecanismos de financiamento.
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A Europa precisa de gastar muito mais em investigação e inovação e de as colocar no centro da sua economia se quiser aumentar a competitividade, afirmou o presidente de um grupo de peritos que avalia o principal programa de financiamento da investigação da UE, numa entrevista à Revista Horizon.
O Professor Manuel Heitor, antigo Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, apresentou em Bruxelas, a 16 de outubro, um relatório intercalar sobre o programa Horizonte Europa que irá decorrer entre 2028 e 2034, e definiu as prioridades para o seu sucessor.
Alertando para o facto de o mundo estar em rápida mudança, em especial no domínio da tecnologia, o Comissário afirmou que o orçamento da UE para a investigação deve mais do que duplicar, definindo o objetivo de 220 mil milhões de euros para o próximo período. Defende ainda que os procedimentos devem ser simplificados, e reduzidos os custos para os participantes.
O Horizonte Europa, com um financiamento de quase 100 mil milhões de euros durante o período de 2021-2027, representa a terceira maior parte do orçamento da UE, a seguir à política de coesão e à agricultura.
Manuel Heitor afirmou que a Europa terá também de aumentar a cooperação científica internacional, em particular com investigadores da China, mas também com os EUA, África e América Latina, para se manter relevante a nível mundial.
Propôs também a criação de dois novos conselhos, para a competitividade industrial e para os desafios societais, e sublinhou a necessidade de transformar a fuga de cérebros de jovens cientistas da Europa num ganho de cérebros na próxima década.
Leia a entrevista abaixo para mais pormenores sobre várias questões relacionadas com a investigação e a inovação, e sobre as recomendações de Manuel Heitor para o futuro.
Porque chamou ao seu relatório "Alinhar, Agir, Acelerar"?
Temos de alinhar as estratégias económicas, sociais e de defesa de forma a impulsionar a investigação, a tecnologia e a inovação. Agir de forma rápida e corajosa, para garantir que a investigação, a tecnologia e a inovação estejam no centro da nossa economia. Acelerar o processo regulamentar e institucional para garantir que conseguimos responder às rápidas mudanças no panorama tecnológico.
O contexto da investigação e da inovação está a mudar radicalmente e, por isso, temos de acelerar os processos institucionais para financiar e promover a investigação, a tecnologia e a inovação.
Na sua opinião, como evoluiu o contexto da investigação na Europa desde a publicação da última avaliação, há sete anos? O que é que é diferente agora e que deve ser tido em conta no futuro?
Há sete anos, não tínhamos capacidade para criar empresas em fase de arranque. Agora já conseguimos e devemos estar orgulhosos. Nos últimos cinco anos, criámos mais empresas em fase de arranque do que os Estados Unidos. Mas a questão que se coloca neste momento, é que não tivemos capacidade de expandir essas empresas, e os dados recentes da Comissão devem preocupar-nos a todos. A maior parte das empresas em fase de arranque que realmente cresceram e se tornaram os chamados "unicórnios", ou seja, empresas com uma avaliação de mercado superior a mil milhões de euros, cresceram nos Estados Unidos e não na Europa. Cresceram essencialmente através de fundos de investimento americanos, e isto é um sinal de alerta para a Europa.
Em segundo lugar, vemos nos dados da Comissão que a maior fração das patentes resultantes da investigação fundamental financiada através do Conselho Europeu de Investigação foi valorizada nos Estados Unidos através de grandes empresas americanas e de grandes fundos de investimento americanos, e não na Europa. Portanto, há ainda algo de errado com o processo de expansão destas empresas na Europa.
Os últimos dados oficiais do Eurostat mostram que, na Europa, conseguimos aumentar significativamente o número de investigadores para mais de 2 milhões em 2021, o que representa cerca de 1% da população ativa europeia. A questão é que temos atraído jovens e jovens doutorados para a investigação e a inovação, mas não temos conseguido melhorar a qualidade dos postos de trabalho em investigação ao mesmo ritmo.
Aumentámos o número de investigadores, em particular de jovens investigadores, mas, ao mesmo tempo, estamos a enfrentar uma fuga de cérebros muito grave de jovens doutorados, em particular para os Estados Unidos. E isto não afeta apenas os pequenos países do Leste ou do Sul da Europa; afeta, sobretudo, os grandes países da Europa Central, como a França, a Itália, a Espanha e a Polónia. É uma matéria que temos de levar muito a sério.
Como é que o panorama internacional da investigação mudou?
A literatura recente mostra que, em muitos domínios, são os cientistas chineses que lideram as áreas científicas. Salientámos que esta é uma chamada de atenção para a Europa, para uma forma completamente nova de entender a colaboração internacional com os Estados Unidos, mas certamente também com a China, e também com a capacidade única da Europa de colaborar com África e com a América Latina. Temos de entender a colaboração internacional de uma forma completamente distinta.
No nosso relatório apresentamos com toda a clareza que, apesar da luta económica entre os Estados Unidos e a China, a colaboração científica entre os cientistas americanos e chineses aumentou drasticamente nas últimas décadas. E a ciência europeia, a colaboração entre cientistas europeus e chineses, ainda é muito, muito baixa em comparação com a americana. [...]
O seu relatório inclui 12 recomendações. Se houvesse apenas uma que pudesse destacar, qual seria?
Precisamos de um programa-quadro sólido. Precisamos de um orçamento de, pelo menos, 220 mil milhões de euros, incluindo uma simplificação radical do processo de candidatura.
Esta frase inclui três mensagens principais: um programa-quadro sólido; um orçamento adequado; e simplificações radicais, com inovações radicais em áreas críticas (cooperação global, contratos públicos para inovação, investigação no domínio da defesa).
Um programa-quadro sólido exige a inclusão de uma carteira de quatro "esferas de ação" conexas e interligadas: a excelência competitiva; a competitividade industrial; o desafio societal; e o ecossistema europeu de investigação e inovação. [...]
Observámos uma complexidade crescente do processo, não necessariamente do lado da Comissão, mas do lado dos beneficiários... Os formulários de candidatura começaram a introduzir uma série de necessidades para descrever o impacto social, o impacto económico, e os técnicos passaram isso para as empresas de consultoria escreverem.
Isto aumentou de tal forma a complexidade dos programas, que fez com que muitas empresas inovadoras líderes, pequenas e grandes empresas, dissessem: "Não queremos envolver-nos numa questão tão complexa". Isto é mau, é inaceitável. Por conseguinte, o programa-quadro necessita de uma simplificação radical, para reduzir a complexidade para os beneficiários e não necessariamente apenas para a Comissão. [...]
Este deve ser um programa orientado para as pessoas, para os utilizadores, e deve ser mais ascendente, com um compromisso muito melhor entre a investigação ascendente e descendente, com convites menos prescritivos à apresentação de propostas.
Quantas das 12 recomendações considera que poderiam ser concretizadas durante a vigência do atual programa Horizonte Europa?
As nossas recomendações devem claramente ser implementadas nos próximos três anos do Horizonte Europa, ou seja, em 2025, 2026 e 2027, para experimentar novas formas de gerir o programa de modo a construir o próximo programa-quadro. Assim, por exemplo, os dois novos conselhos que sugerimos para governar a competitividade industrial e os desafios societais devem ser criados em 2025. [...]
Introduzimos ainda a necessidade de uma maior atenção à qualidade dos empregos de investigação criados, paralelamente à que é dada à qualidade e ao impacto dos resultados da investigação produzida. Mas para isso são necessários novos métodos de avaliação, reforçando a "revisão pelos pares", recorrendo ao apoio de novas tecnologias e sistemas avançados (incluindo os baseados em IA), juntamente com novas ferramentas para reduzir o "tempo de financiamento".
Estão a decorrer vários testes, nomeadamente em fundações privadas em todo o mundo, e a Comissão deveria testá-los nos próximos três anos para aplicar novos sistemas de avaliação e de financiamento que necessitam de ser experimentados. Não sabemos como fazê-los, por isso precisamos de pessoas de topo a analisá-los e a testar e experimentar novos esquemas.
Porque, mais uma vez, o tempo de financiamento no atual programa e no Horizonte 2020 está a tornar-se inaceitável, quase um ano. Mas também o tempo necessário para preparar as propostas é enorme. Por isso, precisamos de reduzir esses tempos, recorrendo a novas ferramentas e à inteligência artificial, em particular, para acelerar estes processos.
O que acha que aconteceria se as recomendações do seu relatório não fossem seguidas?
Continuaremos a assistir a um declínio da competitividade europeia. Por conseguinte, este conjunto de relatórios, o relatório Letta, o relatório Draghi, o relatório As Escolha da Europa de Ursula von der Leyen, deve ser utilizado como um sinal de alerta para a Europa. Devemos orgulhar-nos do projeto europeu. Mas esta ideia não deve ser a do "business as usual". Devemos também orgulhar-nos da nossa capacidade de fazer melhor. Temos a capacidade de fazer melhor. E o nosso relatório pretende ser um alerta para que não continue o "business as usual". [...]
Nos próximos dois ou três anos, teremos um forte debate nos Estados-Membros da UE e no Conselho, certamente na Comissão e, acima de tudo, no Parlamento Europeu.
As partes interessadas devem utilizar estes relatórios para a argumentação e a defesa das suas posições. E a decisão final será certamente um processo muito coletivo. Reitero que este relatório, os relatórios Letta e Draghi, e As Escolhas da Europa de von der Leyen, são instrumentos a utilizar na defesa dos interesses das partes envolvidas.
Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.