Associação Portuguesa de Apoio à Vítima acredita que a maioria dos crimes de coação não é denunciada. Quase um terço dos arguidos sujeitos a julgamento acabaram por ser absolvidos.
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Numa década, 280 indivíduos foram condenados nos tribunais portugueses por coação sexual, um crime que raramente é denunciado, por vergonha ou por temor de represálias, mas também por desvalorização de comportamentos socialmente aceites. Existe ainda uma autoculpabilização que leva as vítimas a nunca apresentarem queixas junto das autoridades.
Ao longo dos últimos anos, foram muitas as figuras públicas que denunciaram casos de assédio sexual. Revelaram chantagem no meio profissional e não só, em que foram vítimas de condutas ou propostas impróprias. Caso aceitassem, teriam a vida facilitada, mas a recusa ditou muitas vezes dificuldades na carreira.
Em Portugal, o crime de assédio sexual não existe. No Código Penal, o conceito dilui-se entre os crimes de coação e importunação sexual. A importunação pune quem praticar perante uma vítima "atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual", mas também "constrangendo-a a contacto de natureza sexual". Prevê uma pena de prisão de um máximo de um ano ou mesmo pena de multa até 120 dias. Já o crime de coação traduz-se no constrangimento de outra pessoa a praticar um ato sexual de relevo. É punido com pena de prisão até cinco anos.
De acordo com dados estatísticos fornecidos ao JN pelo Ministério da Justiça, entre 2011 e 2020 foram constituídos arguidos 394 indivíduos e condenados 280.
Número esconde cifras negras
"Este número pode ser interpretado em duas dimensões. Primeiro, o rácio de condenações por número de processo, e temos condenações com uma taxa significativa. Depois, pode ser interpretado quanto ao global dos números. Ou seja, podemos pensar que estes crimes não estão a ser reportados de acordo com a realidade. Existem cifras negras", explicou ao JN Carla Ferreira, responsável da Rede CARE (apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual) da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).
Segundo o Ministério da Justiça, chegaram 419 processos aos tribunais na última década. Ou seja, perto de 70% dos inquéritos que chegam às salas de audiências continham prova suficiente para dar lugar a uma condenação.
"Estando em específico a falar dos crimes sexuais, nem sempre é possível reunir prova física. Na coação sexual a prova faz-se assente na prova testemunhal. Pode ser das vítimas ou de pessoas próximas, mas também pode haver mensagens ou outro tipo de prova material. Tudo isso é válido", adiantou Carla Ferreira, para quem a taxa de 30% de absolvições não significa necessariamente que não houve crime: "Apenas não se fez prova", diz.
A grande dificuldade neste tipo de delito é o primeiro passo. É fazer com que a vítima denuncie o caso, num prazo de seis meses. Após esse tempo, a justiça já não poderá atuar. Regra geral, as vítimas têm dificuldade em identificar as situações como assédio ou mesmo crime.
"No momento, as pessoas podem não ter consciência de viver uma situação abusiva. Acharam que podia ser um caso isolado. Podem acreditar que elas próprias interpretaram mal, ou mesmo que elas próprias precipitaram a situação. Acabam por se culpar a elas próprias", diz Carla Ferreira.
Tudo isso leva a que as situações não sejam identificadas como abusivas, mas também existe vergonha e receio em denunciar. "A vítima coloca-se numa situação que a queixa vai depender daquilo que os outros vão pensar dela, após a denúncia. A lógica pode vir a ser: se calhar, é melhor não denunciar, porque poderá sofrer consequências laborais, caso a vítima esteja numa relação de dependência ou subordinação laboral em relação ao agressor.
Julgado por molestar sexualmente funcionários que prometia promover
O presidente do Lar Santa Isabel, em Gaia, está a ser julgado por beijar e acariciar, contra a sua vontade, duas funcionárias. Ambas acabaram por meter baixa. Em causa, tal como o JN noticiou, estão 13 crimes de coação sexual agravada e um de perseguição. Fernando V., 74 anos, suspenso de funções por ordem judicial, já negou os crimes no julgamento. Entre 2017 e 2019, segundo o Ministério Público (MP), terá assediado, primeiro, uma auxiliar que chamou ao seu gabinete depois de lhe prometer o lugar da sua chefe. Encostou-a a uma mesa e deu-lhe um beijo na boca. A vítima afastou-se, mas passou a temê-lo. A cena repetiu-se, mas dessa vez ela já evitou o beijo e disse-lhe que parasse. Desde esse momento passou a assediá-la todos os dias, até que ela meteu baixa por razões psicológicas. A outra funcionária chegou a ser promovida pelo arguido que a abordou num armazém e deu-lhe um beijo na boca. A vítima afastou-se mas voltaria a ser molestada e entrar em depressão. Ainda hoje é acompanhada por um psiquiatra. O MP propôs que o arguido fique proibido de exercer as funções.
O que diz a Lei
Artigo 163.º Coação sexual
Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até cinco anos.
Artigo 170.º Importunação sexual
Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Casos mediáticos
Sofia Arruda: "Deixei de ter trabalho"
A atriz Sofia Arruda revelou que foi vítima de assédio sexual, num canal de televisão, e perdeu trabalho por não ceder a uma "aproximação não profissional" de uma pessoa poderosa. "Deixei de ter trabalho. Foi uma situação muito delicada, sabia porque é que não estava a ser escolhida. Foi uma aproximação menos profissional da parte de uma pessoa com muito poder dentro de uma estação de televisão, uma produtora", denunciou Sofia Arruda, de 32 anos, em entrevista ao programa "Alta definição", da SIC, em abril do ano passado.
Rita Pereira: "Achava que era normal"
Um mês antes da revelação de Sofia Arruda, a também atriz Rita Pereira veio a público contar ter sofrido assédio sexual e abusos entre os 13 e os 21 anos. Escolheu as redes sociais para dizer que, durante anos, tinha sido "inocente" e não tinha querido chamar à atenção. Nunca denunciou. "Ria-me, pedia-lhes que se afastassem em paz, eu fugia da situação. Achava que era normal homens abordarem-me, agarrarem-me o braço, para me perguntarem o nome, e encostarem-se a mim no meio da rua", contou, num vídeo partilhado nas redes sociais.
Catarina Furtado: "Fui assediada sexualmente"
Catarina Furtado revelou que "o momento mais embaraçoso" da sua vida foi aquele em que foi "assediada sexualmente". A revelação foi feita durante a gravação do podcast "Cada Um Sabe de Si", da Rádio Comercial. "Vou mesmo falar a sério agora. E não pensem que é moda, mas, como agora toda a gente fala, há uma libertação geral. [O momento mais embaraçoso da minha vida] foi quando fui assediada sexualmente", afirmou, acrescentando que isso aconteceu em contexto de trabalho.
Cristina Ferreira: "Ele queria "comer-me""
Em 2016, um ano antes de o movimento Me Too ter ganhado dimensão internacional, a apresentadora Cristina Ferreira revelava ter sido vítima de avanços impróprios no trabalho. "As flores indiciavam uma óbvia tentativa de conquista. As palavras, mansas, acusavam um objetivo claro: ele queria "comer-me". E não! Não há outra expressão que melhor defina o que ele queria. Percebi, em todas as entrelinhas dos elogios despropositados, uma gana que me metia nojo", escreveu a apresentadora no seu livro "Sentir".