PJ propôs acusações de médicos, técnico, enfermeira e gestora no Cruz Vermelha por abuso de poder e recebimento indevido de vantagem.
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As conclusões da investigação da Polícia Judiciária (PJ) eram claras. Os três responsáveis pela elaboração da lista de pessoal prioritário para vacinar contra a covid-19 no Hospital da Cruz Vermelha (HCV), assim como três médicos e um técnico, tinham de ser acusados pelos crimes de abuso de poder e recebimento indevido de vantagem.
Mas o Ministério Público (MP) teve um entendimento diferente e arquivou o caso. Os vacinados agiram sem dolo e quem os selecionou também. As irregularidades detetadas levaram, na altura, à demissão do então líder da task force, Francisco Ramos, que era simultaneamente presidente da Comissão Executiva do HCV.
O inquérito foi aberto depois de surgirem notícias na comunicação social apontando ilegalidades no processo de vacinação. O MP confiou a investigação à Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ. Ao mesmo tempo, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde também realizou averiguações que acabariam arquivadas.
A PJ verificou que os três médicos e o técnico vacinados eram externos ao hospital e não tinham vinculo laboral com o HCV. Para dois deles, entre o verão de 2020 e fevereiro de 2021 (data de vacinação), "nem foram detetados fluxos financeiros referentes a serviços prestados" pelos clínicos "em prol de utentes desta unidade privada de saúde". Ou seja, nem sequer foram ao hospital.
Sobre os três responsáveis pela elaboração da lista que incluiu os médicos arguidos, os investigadores concluíram que a enfermeira diretora, o diretor clínico e uma administradora "não executaram com rigor e zelo o cumprimento da missão cometida e violaram a confiança neles depositada ao incluírem na fase 1 profissionais que não preenchiam os parâmetros de elegibilidade e/ou por não estarem afetos ao serviço do HCV".
Ao MP, os inspetores sugeriram que os arguidos fossem então acusados por crimes de abuso de poder e recebimento indevido de vantagens. Contudo, o MP entendeu de forma diferente. De acordo com o despacho de arquivamento a que o JN teve acesso, "não se vislumbrou que tenha existido uma conduta, em coautoria ou individualizada, com vista a dolosamente beneficiarem os referidos médicos" e que estes podiam mesmo integrar a lista prioritária.
O Ministério Público apoia-se nos factos de ninguém entre os arguidos se conhecer ou ter laços pessoais que levasse à manipulação da lista para benefício próprio ou por favor a outro. O procurador também argumenta que apesar de os quatro beneficiados não terem vínculo com o hospital, trabalhavam de facto lá e podiam ser elegíveis para a lista.
Em causa, esteve "a mera errada interpretação dos critérios estabelecidos, que em relação aos médicos teve que ver com a avaliação do risco de exposição e de vínculo com o Hospital, e ainda de uma errada ordenação e uma errada aplicação do princípio da igualdade".
Há mais de 100 investigações em curso
A PJ tem atualmente mais de 100 inquéritos-crime em investigação, no âmbito das irregularidades detetadas no plano de vacinação de covid-19. A maioria das 169 situações suspeitas detetadas por inspeções foram comunicadas ao Ministério Público e várias originaram acusações. Outras deram em arquivamento, como foi o caso do inquérito que visava o Hospital da Cruz Vermelha e que fez cair o ex-líder da task force da vacinação, Francisco Ramos.
Entretanto por motivos alheios aos inquéritos, Francisco George, presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, deve ser substituído pela ex-ministra da Saúde, Ana Jorge.
Pormenores
Técnico ao serviço
Um dos profissionais que levaram a vacina indevidamente é técnico de hemodiálise e tem contrato com uma empresa que presta serviços ao hospital e trabalha naquela unidade de saúde toda a semana.
Enfarte
Um dos médicos visados afastou-se do serviço e esteve de baixa porque tinha sofrido um enfarte. Garantiu no inquérito que se preparava para regressar ao hospital, após a toma da vacina.
Idade de risco
Outro dos médicos suspendeu as consultas no hospital no início da pandemia por ter 70 anos e recear a covid.
* com Alexandre Panda