Número de ocorrências cresce 25% em quatro anos, mas quantidade de detidos cai 25,4% nos últimos três anos. APAV regista 5100 crimes sexuais contra crianças desde 2022, um aumento de 48% neste período.
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A partir dos seis anos, os passeios de Ana com o tio-avô, em Sintra, tornaram-se um inferno. As idas ao parque eram só uma desculpa para ele abusar dela na casa de banho pública. Por vezes, trazia um amigo, que também a violava. O martírio prolongou-se por cinco longos anos. Ameaçada e com medo, Ana calou-se e guardou a dor para si. Perdeu a conta às violações, mas terão sido mais de cem. Em 2024, quase dez anos depois do fim dos abusos, Ana ganhou força e denunciou o caso. O tio-avô, agora com 61 anos, e o amigo foram detidos pela PJ e aguardam julgamento.
O caso de Ana foi um dos 1041 abusos sexuais de crianças e menores registados pelas autoridades, no ano passado. Segundo o portal oficial do Estado para as Estatísticas da Justiça, o número de denúncias destes crimes aumentou 25% em apenas quatro anos. É o valor mais alto desde 2015, ano em que se iniciaram 1044 inquéritos. Desde 2022, os inquéritos de pornografia infantil e lenocínio de menores de 16 anos tiveram um aumento ainda maior. Passaram de 85 em 2022, para 131 no ano passado: mais 54%.
Aumento de 46% na APAV
Os números da APAV confirmam a tendência de crescimento. Nos últimos três anos, a Associação de Apoio à Vítima teve conhecimento de mais de 5100 crimes sexuais contra menores, sendo que o número anual aumentou 46% ao longo deste período. Nestes três anos, os crimes de tipologia sexual representaram 30% de todos os ilícitos contra menores assinalados pela instituição.
Apesar do aumento destes crimes, o número de detenções, nos mesmos três últimos anos, diminuiu 25%. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), em 2022, tinham sido detidos 114 suspeitos de abuso sexual de crianças. O número baixou para 110 no ano seguinte e, no ano passado, foram apenas detidos 85 suspeitos deste crime. Se tivermos em conta todos os crimes sexuais contra menores, de 2022 para 2024, o número anual de detidos também caiu de 186 para 162, uma diminuição de 13%.
Carla Ferreira, da APAV, admite que o aumento de crimes registados signifique uma efetiva subida de crimes praticados, mas também aceita que haja uma maior predisposição para denunciar os casos. “Será um pouco das duas coisas. Acredito que haja uma maior consciência, mas também um aumento da criminalidade. Só com um diagnóstico nacional da vitimação é que conseguiríamos ter uma fotografia mais certa da realidade”, explica.
Todavia, há uma certeza: “Sabemos que o que está a ser reportado é uma pequeníssima parte do que está a acontecer”, assegura a gestora da rede APAV Care, especializada no apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual.
60% dos crimes sexuais
Olhando para o RASI de 2024, verificamos que o abuso sexual de crianças domina os crimes de natureza sexual, com 38% de todos os inquéritos iniciados. Segue-se a violação, com 20%, e a pornografia de menores, com 13,8%. Somando todos os crimes sexuais contra crianças e menores, estes assumem um peso de 60,6% em todos os inquéritos de natureza sexual.
O RASI detalha que a maioria das vítimas de abuso sexual de crianças (68,4%) tem entre 8 e 13 anos, seguindo-se o escalão entre os 4 e 7 anos (23,1%) e entre os 0 e os 3 (8,4%). Os arguidos têm maioritariamente entre 31 e 40 anos (20,5%) e 41 e 50 anos (18,6%). Depois, há os que têm 51 e 60 anos (13,6%), 21 e 30 anos (13,4%) e 16 e 18 anos (12,4%).
Dois casos recentes
Jovem condenada a 25 anos de prisão por abusar e aterrorizar
Uma jovem de 20 anos foi condenada a 25 anos de prisão por mais de 50 crimes de violação de menor, ameaça e importunação sexual contra quatro meninas, em Angra do Heroísmo. A principal vítima, de 14 anos, chegou a tentar o suicídio. Ao longo de cinco meses, numa média de três vezes por semana, a agressora esperava pela criança à porta da escola. Valendo-se da sua superior força física, agarrava-a, agredia-a e apalpava-a violentamente nas zonas íntimas. Nunca mostrou qualquer arrependimento. Em fevereiro deste ano, o tribunal não teve contemplações: pena máxima de 25 anos de prisão.
Professor acusado de 3734 abusos assumiu “quase tudo”
Um professor primário da Póvoa de Lanhoso, com 50 anos, está ser julgado por milhares de crimes de abuso sexual de crianças, contra 11 das suas alunas, entre os 6 e os 9 anos, cometidos de setembro de 2017 a maio de 2024. Segundo a acusação, em plena sala de aula, sentava uma ou duas meninas no colo e, enquanto dava as aulas, tocava-lhes de maneira sexual. No início do julgamento, a 1 de abril de 2025, admitiu “quase tudo” o que consta na acusação, justificando os atos com “um impulso incontrolável” e pedindo “desculpa e perdão”. O julgamento decorre no Tribunal de Guimarães.
Dados 2024
1041 crimes de abusos sexuais de menores
Estatísticas da Justiça registaram mais 213 ocorrências deste tipo do que em 2021
85 suspeitos detidos
Foram detidas 162 pessoas por crimes sexuais contra menores, 85 das quais por abuso sexual de crianças e 60 por pornografia.