Ministério Público queria que homem de 64 anos continuasse a poder votar mas Relação de Évora rejeitou.
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O Tribunal da Relação de Évora confirmou a retirada do direito de voto a um homem de 64 anos, residente na Quinta do Conde, Setúbal. O Ministério Público (MP), que tinha instaurado uma ação de acompanhamento de maior, discordara da restrição, mas o recurso foi rejeitado.
Segundo o acórdão, de 28 de janeiro deste ano, o visado "sofre de alcoolismo crónico, com alterações graves e permanentes da memória e deterioração cognitiva que o impossibilitam de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e cumprir os seus deveres".
Rosário Zincke dos Reis, jurista e membro da Direção da Alzheimer Portugal, explica que "a retirada do direito de voto dos acompanhados não é muito comum, mas é por esquecimento dos juízes". O Regime do Maior Acompanhado (ler texto ao lado) discrimina alguns dos direitos pessoais que, por sentença, podem ser restringidos. Porém, como o direito de voto não é expressamente referido, muitas vezes é olvidado nas sentenças. "Há juízes mais cuidadosos que até fazem a ligação com a lei eleitoral, mas contam-se pelos dedos das mãos", acrescenta Rosário Zincke.
Irmã ficou com poderes
O Tribunal de Setúbal tinha decidido que, a partir de 1 de novembro de 2019, a irmã do beneficiário ficaria com poderes de representação, incluindo a gestão financeira de bens e rendimentos. A sentença ditou ainda a restrição de vários direitos pessoais, incluindo casar ou constituir união de facto, procriar, perfilhar, adotar, cuidar e educar filhos biológico ou adotados, deslocar-se sozinho e até votar.
O MP não concordou com esta última limitação e recorreu, invocando a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, que motivou o novo regime e cujo artigo 29.o obriga os estados a garantirem-lhes os direitos políticos, incluindo o direito a votarem e ser eleitas.
O recurso defendia que a nova legislação apenas admitia a incapacidade eleitoral para aqueles que "notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos".
A Relação não acolheu a pretensão do MP e diz mesmo que "o sentido útil da expressão tem o alcance oposto do defendido pelo recurso". Ou seja, que pode ser aplicada àqueles casos, além dos acompanhados. Os desembargadores explicam que não faria sentido que a lei permitisse a incapacidade eleitoral sem formalidades e não a permitisse no âmbito de um procedimento judicial como o do Regime do Maior Acompanhado. Portanto, conclui o acórdão, as alterações legais introduzidas "não obstam a que a sentença de acompanhamento determine a incapacidade eleitoral ativa do maior acompanhado".
Limitações de caráter permanente
O Tribunal deu como provado que o homem sofre de alcoolismo crónico, "com consequências do ponto de vista médico, nomeadamente alteração grave da memória já numa fase de síndrome demencial, de caráter permanente e irreversível, bem como crises epiléticas, ataxia e deterioração cognitiva". A sua condição impossibilita-o de fazer várias coisas mundanas, como ler e escrever; manter uma comunicação simples e com sentido; gerir património, despesas e até a própria medicação; falar do passado recente e memorizar factos novos; realizar sozinho qualquer tarefa em casa, por mais simples que seja; caminhar com equilíbrio e deslocar-se a uma consulta médica.